Floresta, biodiversidade (Getty Images)
Publicado em 4 de novembro de 2025 às 21h08.
Por Denise Hills e Regina Magalhães
A biodiversidade está se tornando um ativo estratégico e a inteligência artificial começa a revelar seu valor econômico, cultural e ambiental, criando métricas confiáveis, reduzindo custos de monitoramento e conectando a natureza às estratégias de negócios.
A biodiversidade reúne múltiplas dimensões de valor que vão do equilíbrio ecológico às práticas culturais, passando por benefícios sociais e oportunidades econômicas. Sua preservação garante funções essenciais para a vida, sustenta conhecimentos tradicionais e inspira inovação em produtos e serviços. Esse patrimônio está sob ameaça crescente em razão da degradação ambiental e da pressão de atividades ilegais. A inteligência artificial surge como aliada para mudar esse cenário, criando métricas confiáveis, reduzindo custos de monitoramento e conectando a natureza a estratégias empresariais e à valorização comunitária. Nesse movimento, empresas e comunidades podem usar tecnologia para preservar a biodiversidade e fortalecer os valores que dela derivam.
A trajetória da Natura indica como a biodiversidade pode se tornar fonte de vantagem competitiva quando apoiada por dados de qualidade. A empresa digitalizou áreas extensas de floresta com drones e sensores multiespectrais e aplicou algoritmos capazes de reconhecer espécies e estimar a oferta de bioingredientes. Com o inventário em mãos, o planejamento da cadeia de fornecimento ganhou precisão, a logística ficou mais eficiente e as perdas diminuíram. A previsibilidade favoreceu contratos com comunidades fornecedoras e reduziu incertezas industriais. Os dados ecológicos passaram a dialogar com metas de negócio, permitindo que produtos e mercados sejam desenhados com base em evidências. Essa base também sustenta a criação de instrumentos financeiros ligados à biodiversidade e amplia a confiança de investidores na bioeconomia.
A Suzano enfrentou um desafio diferente e igualmente estratégico. Em regiões de base florestal, incêndios e eventos extremos comprometem ativos naturais e resultados financeiros. A companhia implantou um sistema integrado que combina câmeras de alta resolução, imagens de satélite e modelos preditivos de propagação do fogo. A detecção rápida reduziu perdas de biomassa e diminuiu custos de reflorestamento, além de proteger a continuidade operacional. As métricas de desempenho, auditáveis e contínuas, fortaleceram a emissão de títulos e melhoraram o acesso a crédito atrelado a resultados ambientais. O caso mostra como a inteligência artificial, quando encaixada na rotina de gestão, gera benefícios ambientais e financeiros.
Nas comunidades, a tecnologia tem servido ao fortalecimento territorial e à preservação cultural. Na Amazônia peruana, redes de sensores de áudio integradas a algoritmos identificam em tempo quase real sons de motosserras e explosões associadas ao garimpo ilegal. O registro acústico georreferenciado permite acionar autoridades com rapidez e apoiar medidas legais de proteção, o que eleva a capacidade de vigilância local sem substituir o protagonismo comunitário. A escuta contínua da floresta, combinada com análise digital, cria um fluxo de evidências que reforça a defesa do território e desestimula atividades predatórias.
No Brasil, experiências de bioacústica e observação participativa registram o canto de aves, a presença de polinizadores e ruídos de motores em áreas sensíveis. Esses sinais, interpretados por modelos de inteligência artificial, somam-se ao conhecimento tradicional para orientar ações de cuidado, definir áreas prioritárias e fortalecer a autoridade das comunidades na gestão do território. O resultado é um sistema híbrido de monitoramento que valoriza saberes e aumenta a eficácia da proteção da biodiversidade. A tecnologia amplia o alcance de práticas que já existem, oferece visibilidade a quem cuida da floresta e cria pontes com instituições de pesquisa e fiscalização.
Os governos também começam a explorar o potencial da inteligência artificial. No Brasil, o MapBiomas processa imagens de satélite em nuvem e produz séries anuais de uso e cobertura do solo que orientam políticas públicas e ações de fiscalização. Nos Estados Unidos e no Canadá, modelos computacionais ajudam a definir corredores ecológicos e a planejar conectividade entre habitats, o que reduz fragmentação e melhora a resiliência dos ecossistemas. No Peru e na Colômbia, iniciativas regionais combinam bioacústica e arranjos de tokenização de créditos de biodiversidade, aproximando tecnologia, comunidades e políticas públicas e multiplicando o alcance de ações de conservação.
Os efeitos econômicos, culturais, ecológicos e sociais não surgem de forma automática. Eles dependem de escolhas explícitas que precisam estar presentes em políticas, contratos e modelos de negócio e que devem se refletir na arquitetura tecnológica. É fundamental decidir como os dados serão coletados e tratados e quem se beneficia deles. Quando essa intencionalidade está clara, a inteligência artificial deixa de ser ferramenta neutra e opera como alavanca de conservação, inclusão e competitividade.
A governança de dados é o eixo dessa virada. Para empresas, dados auditáveis e padronizados reduzem riscos de reputação e agilizam o atendimento a exigências regulatórias em mercados mais criteriosos. Para comunidades, governança significa controle sobre o que é coletado, consentimento informado e repartição justa de benefícios. Sem arranjos sólidos, a tecnologia pode ser apropriada de forma desigual e usada para gerar indicadores que não produzem valor. Com transparência e salvaguardas, a qualidade da informação melhora e o valor gerado permanece com quem produz e protege.
O acesso a financiamento também se apoia em métricas robustas. Companhias já vinculam parte da dívida a indicadores de biodiversidade e conseguem custos menores quando entregam resultados verificáveis. Comunidades acessam fundos de conservação e mercados de carbono ou de biodiversidade quando monitoram territórios com precisão e apresentam evidências claras de impacto. A inteligência artificial reduz o custo de coleta e verificação e permite que atores diferentes participem da bioeconomia em condições mais equilibradas. Quando a prova de resultado é confiável, capital público e privado se aproximam e o ciclo de investimento se acelera.
A inteligência artificial tem capacidade de revelar dimensões da biodiversidade que ficavam invisíveis nas métricas tradicionais. Ao traduzir sinais da natureza em indicadores compreensíveis para empresas, comunidades e governos, a tecnologia expõe oportunidades econômicas, fortalece culturas e amplia a proteção de ecossistemas. O desafio é garantir que esses avanços sejam guiados por governança sólida e pela repartição justa de benefícios. Quando isso acontece, a biodiversidade passa a ocupar o centro de uma estratégia de desenvolvimento que integra inovação, inclusão social e preservação ambiental.
Regina Magalhães
Consultora em inovação e sustentabilidade. Doutora em Ciências Ambientais pela USP, com formações executivas no MIT e em Stanford, participa de comissões do IBGC e integra conselhos de organizações de relevância nacional. É reconhecida pela formação de lideranças em sustentabilidade e transformação digital.
Denise Hills
Executiva com mais de 35 anos em finanças e 15 dedicados à inovação e sustentabilidade, é referência em finanças sustentáveis no Brasil. Foi diretora no Itaú Unibanco e na Natura &Co e presidiu a Rede Brasil do Pacto Global da ONU. Hoje atua como conselheira em empresas e organizações, além de Senior Advisor em estratégia, negócios e sustentabilidade.