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Como três escoteiros foram de São Paulo ao Alaska dirigindo um Jeep 1955

Operação Abacaxi completa 70 anos; expedição custou US$ 4,5 mil e passou por 19 países

 (Divulgação/Divulgação)

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Rodrigo Mora
Rodrigo Mora

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Publicado em 12 de abril de 2025 às 07h28.

Durante uma das reuniões do centenário Grupo Escoteiro Carajás, lá em 1954, o uruguaio Hugo Vidal, o britânico Charles Downey e o brasileiro Jan Stekly decidiram que chegara a hora de conhecer o Jamboree de perto. Espécie de copa do mundo do escotismo, naquela sétima edição seria realizado no Canadá.

“Ao final da reunião, fomos até a padaria Regência, na rua Groelândia, pedimos uma cerveja e definimos que, a partir daquele momento, a prioridade dos três seria achar um meio de fazer aquela viagem acontecer. Estávamos dispostos a desistir de qualquer outra atividade, como trabalho, estudos ou namoro”, conta Vidal, único dos três ainda vivo, em seu livro "Operação Abacaxi: flashes de uma aventura" (Editora Overlander, 2018).

Decidiram, então, chegar lá de carro – o que nenhum deles tinha. Para a sorte do trio, Vidal trabalhava na Agromotor, a distribuidora da Jeep na época, e quando foi pedir licença do trabalho ouviu do chefe, um ex-escoteiro holandês, que não apenas estava liberado como também poderia pegar um CJ-3B emprestado.

Faltava ainda quem pagasse a conta, mas como a então incipiente indústria nacional de autopeças precisava de publicidade, 25 empresas que formavam o que viria a ser o Sindipeças pegaram carona na jornada para, em troca de patrocínio, divulgar sua existência. Meses depois, os escoteiros foram buscar o Jeep na linha de montagem para em seguida desmontá-lo e remontá-lo com componentes dessas empresas. Depois, foi só pintar o carro de verde e amarelo.

O orçamento era de US$ 2 mil para uma viagem de um ano. Batizaram a expedição de Operation Pineapple, ou Operação Abacaxi. A explicação repetida exaustivamente é que no Brasil a fruta é associada a um problema. Se “descascassem” esse abacaxi, provariam que peças nacionais eram confiáveis.

Com todas as adaptações no carro – teto de lona substituído por um de aço, tanques de combustível extras, tanque de água, suspensão elevada, etc. – concluídas, partiram do Vale do Anhangabaú, em São Paulo, às 20 horas do dia 2 de abril de 1955 rumo a Niagara-on-the-Lake, uma província de Ontário. Um amuleto de São Cristóvão, padroeiro dos motoristas, está com Vidal até hoje.

A rota mais viável era pelo Sul. "O traçado era basicamente pelo Pacífico, sendo impraticável pelo Atlântico devido à selva amazônica. Não existiam condições de atravessar o Paraguai e a Bolívia. Restava dar a volta pelo Uruguai, Argentina e Chile para iniciar a subida rumo ao Norte", relembra Vidal em seu livro. 

Uma viagem tão longa exige regras, sobretudo dentro do espaço exíguo de um jipe da década de 1950. Flertes passageiros eram permitidos, mas namoros sérios, não. Uma oportunidade para tomar banho e fazer a barba não poderia ser desperdiçada; sempre expressar seus sentimentos e ideias e o mais importante para o grupo: quando não houvesse unanimidade, a maioria decidiria, mas a minoria cooperaria. 

"E se o clima ficasse muito tenso, estacionávamos o Jeep num lugar seguro, distribuíamos um pouco de dinheiro para cada um e desaparecíamos. Nos encontrávamos no Jeep dali a dois dias. Santo remédio", revela o uruguaio.

Vidal também conta passagens engraçadas, como a do rapaz chileno que, ao cruzar o caminho dos escoteiros, disparou: “já pensei em fazer uma viagem assim, mas e se chover?”, como se fosse esse o principal tormento do trio. No Rio Grande do Sul, acharam estranho aquele “canudo” onde dormiam, pois ninguém ali havia visto um saco de dormir na vida.

Outras nem tão engraçadas assim: ao passarem pela Argentina, sem poder fazer contato com a imprensa local ou publicidade da indústria brasileira, tiveram que colar adesivos dos líderes políticos Juan e Eva Perón nas janelas do Jeep.

Pularam da Colômbia para o Panamá de navio, e na hora do desembarque, o susto: um dos cabos do guindaste que içou o jipe do convés arrebentou, pendurando o carro pelo ar, balançando-o entre o navio e o cais. De lá para a Costa Rica foram de avião, um cargueiro Douglas DC4 da Pan Am que só conseguiu abrigar o CJ depois de desmontados o bagageiro e as rodas traseiras.

Na Nicarágua, durante a travessia de um rio sobre uma ponte improvisada, uma das rodas traseiras escapou da tábua que servia de guia e o Jeep deu uma cambalhota barranco abaixo e parou sobre as quatro rodas. Deram partida no motor e seguiram.

Honduras, El Salvador, Guatemala, México e EUA – por onde passavam, atraíam curiosos e até canais de TV, que registravam a aventura daqueles três malucos. 

Enfim, Canadá. Chegaram dois dias antes da abertura do evento, quatro meses e meio depois de saírem de casa. Aquele Jamboree em Niagara-on-the-Lake recebeu mais de 12 mil escoteiros, de 68 países. Juntaram-se ao trio outros 12 escoteiros brasileiros que foram de avião.

O trajeto de volta não foi menos inusitado. Incluiu uma participação no programa Welcome Travellers, quiz que entrevistava visitantes de Nova York. Foram os vencedores, arrematando um pacote de prêmios que incluía títulos do governo, um freezer e uma viagem. Tudo prontamente vendido e convertido em recursos para uma esticada até o Alaska – que não durou muito, devido ao excesso de gelo nas estradas. 

Foram 72.985 quilômetros percorridos em 375 dias de viagem atravessando 19 países, o que custou US$ 4,5 mil e 11 pneus furados. “A lembrança mais forte, que arrepia até hoje, é o fato de você começar o dia sem saber onde e como vai terminar. Mexe com todos os sentimentos e emoções”, conta Vidal.

Depois da Operação Abacaxi, cada um tomou seu rumo. Charles Downey virou representante comercial, Jan Stekly foi para o Canadá estudar Metalurgia e Hugo Vidal abriu uma empresa que produzia e comercializava itens para veículos 4×4. 

E o Jeep, que fim levou? 

Foi devolvido a Agromotor e em seguida emprestado a uma corretora de valores que usaria o Jeep para divulgar a venda de ações da Willys Overland, que acabara de abrir capital no Brasil. Depois, se perdeu... 

Vidal carrega os números do motor e do chassi até hoje na carteira, caso encontre um jipe igual ao da sua jornada de seis décadas atrás. Enquanto isso não acontece, lembra daqueles momentos toda vez que olha para o CJ3B que mandou restaurar à semelhança do original. 

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