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Relatos selvagens

O filme argentino de 2014 estrelado por Ricardo Darín é pérola de sarcasmo, ironia, e humor autodepreciativo. Devo ter assistido a essa deliciosa coletânea de retratos da Argentina – e que bem poderiam ser do Brasil atual – umas quatro ou cinco vezes, quiçá mais. Bombita, perito em demolições, é meu favorito. Bombita é homem […]

RELATOS SELVAGENS: somos todos Bombita, o personagem que se revolta no filme argentino de 2014 / Divulgação
DR

Da Redação

Publicado em 22 de abril de 2016 às 07h43.

Última atualização em 22 de junho de 2017 às 18h32.

O filme argentino de 2014 estrelado por Ricardo Darín é pérola de sarcasmo, ironia, e humor autodepreciativo. Devo ter assistido a essa deliciosa coletânea de retratos da Argentina – e que bem poderiam ser do Brasil atual – umas quatro ou cinco vezes, quiçá mais. Bombita, perito em demolições, é meu favorito. Bombita é homem dócil, levado a reagir de forma visceral e insana quando confrontado com sistema corrupto e ineficiente, sistema que destrói seu casamento e sua vida pessoal em sucessão de tragédias. Dilma Rousseff nada tem de dócil. Seu (des)governo, que, por óbvio, inclui o Congresso nacional, é exemplo de corrupção e ineficiência. Contudo, ela e os seus esmeram-se em construir relatos selvagens sobre o caos brasileiros.

Chamaram a imprensa, inclusive correspondentes de grandes veículos internacionais de comunicação, para afirmar que os fundamentos da petição de impeachment recém-aprovada pela Câmara dos Deputados – em espetáculo grotesco, diga-se – não configuram crime algum. Segundo o relato selvagem que o governo pretende impor à quem quiser dar-lhe ouvidos, o ocorrido em 2015 – e, em 2012, 2013, 2014 – foi apenas um problema de ordem contábil, algo que várias administrações passadas costumavam fazer. Deixaram de lado alguns fatos importantes.

Primeiramente, que a Lei de Responsabilidade Fiscal brasileira introduzida em 2000 proíbe que o governo se financie por meio de recursos dos bancos públicos. Entre 2012 e 2015, tal financiamento somou quase 1,5% do PIB. Segundo dados do Banco Central, antes de 2007, passivos do Tesouro com os bancos públicos não ultrapassavam, em média, cerca de 0,06% do PIB ao ano – apenas em 2015, o crédito tomado junto às instituições públicas foi de 0,4% do PIB, ou cerca de sete vezes maior do que a média dos anos que precederam a crise financeira internacional. O artigo 36 da Lei de Responsabilidade Fiscal diz que: “É proibida a operação de crédito entre uma instituição financeira estatal e o ente da Federação que a controle, na qualidade de beneficiário do empréstimo”. O mantra governista do “não houve violação da LRF”, portanto, não se sustenta.

Em segundo lugar, em julho e agosto de 2015 o governo assinou seis decretos que previam despesas adicionais para fins diversos, no montante total de 96,5 bilhões de reais. Cerca de 94 bilhões de reais desses gastos adicionais foram compensados por reduções equivalentes de outras despesas. Contudo, 2,5 bilhões de reais não foram compensados por cortes adicionais de despesas conforme prevê a lei orçamentária, como destacou o economista Felipe Salto em artigo recente. De acordo com o artigo 4 da Lei 13.115 de 2015, a lei orçamentária, “fica autorizada a abertura de créditos suplementares, restritos aos valores constantes desta Lei, excluídas as alterações decorrentes de créditos adicionais, desde que as alterações promovidas na programação orçamentária sejam compatíveis com a obtenção da meta de resultado primário estabelecida para o exercício de 2015 e sejam observados o disposto no parágrafo único do art. 8 da LRF e os limites e as condições estabelecidos neste artigo, vedado o cancelamento de valores incluídos ou acrescidos em decorrência da aprovação de emendas individuais, para o atendimento de despesas”.

Ou seja, enquanto tramitava no Congresso a aprovação da mudança da meta fiscal de 2015, o governo emitia decretos autorizando despesas que não apenas infringiriam a meta vigente, mas também a própria lei orçamentária, a LOA de 2015.

Por fim, a selvageria das selvagerias, a indecência mais indecente. Em 2015, o governo usou 35 bilhões de reais do FGTS para fins diversos. O fundo dos trabalhadores brasileiros, a poupança forçada que qualquer pessoa assalariada no Brasil possui, foi indevidamente usado, pasmem, pelo governo que se diz “defensor do trabalhador”. Sabem quanto do FGTS foi usado ao longo do primeiro governo Lula para tais fins? Zero. Nem um tostão. Nem um centavo foi, também, a prática do governo Fernando Henrique Cardoso. Para quê foram usados os recursos do FGTS? Foi tamanha a confusão do governo Dilma que é difícil rastrear a dinheirama. De todo modo, parte relevante certamente deve ter sido usada para financiar a quantia inimaginável de 500 bilhões de reais em financiamentos para o BNDES entre 2010 e 2015.

Sentiram-se aviltados? Vísceras contorcidas ante a constatação de tamanha incompetência e descaso com o dinheiro do seu esforço, dos seus impostos?

Pois, saibam: somos todos Bombita.

MONICA-DE-BOLLE

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O filme argentino de 2014 estrelado por Ricardo Darín é pérola de sarcasmo, ironia, e humor autodepreciativo. Devo ter assistido a essa deliciosa coletânea de retratos da Argentina – e que bem poderiam ser do Brasil atual – umas quatro ou cinco vezes, quiçá mais. Bombita, perito em demolições, é meu favorito. Bombita é homem dócil, levado a reagir de forma visceral e insana quando confrontado com sistema corrupto e ineficiente, sistema que destrói seu casamento e sua vida pessoal em sucessão de tragédias. Dilma Rousseff nada tem de dócil. Seu (des)governo, que, por óbvio, inclui o Congresso nacional, é exemplo de corrupção e ineficiência. Contudo, ela e os seus esmeram-se em construir relatos selvagens sobre o caos brasileiros.

Chamaram a imprensa, inclusive correspondentes de grandes veículos internacionais de comunicação, para afirmar que os fundamentos da petição de impeachment recém-aprovada pela Câmara dos Deputados – em espetáculo grotesco, diga-se – não configuram crime algum. Segundo o relato selvagem que o governo pretende impor à quem quiser dar-lhe ouvidos, o ocorrido em 2015 – e, em 2012, 2013, 2014 – foi apenas um problema de ordem contábil, algo que várias administrações passadas costumavam fazer. Deixaram de lado alguns fatos importantes.

Primeiramente, que a Lei de Responsabilidade Fiscal brasileira introduzida em 2000 proíbe que o governo se financie por meio de recursos dos bancos públicos. Entre 2012 e 2015, tal financiamento somou quase 1,5% do PIB. Segundo dados do Banco Central, antes de 2007, passivos do Tesouro com os bancos públicos não ultrapassavam, em média, cerca de 0,06% do PIB ao ano – apenas em 2015, o crédito tomado junto às instituições públicas foi de 0,4% do PIB, ou cerca de sete vezes maior do que a média dos anos que precederam a crise financeira internacional. O artigo 36 da Lei de Responsabilidade Fiscal diz que: “É proibida a operação de crédito entre uma instituição financeira estatal e o ente da Federação que a controle, na qualidade de beneficiário do empréstimo”. O mantra governista do “não houve violação da LRF”, portanto, não se sustenta.

Em segundo lugar, em julho e agosto de 2015 o governo assinou seis decretos que previam despesas adicionais para fins diversos, no montante total de 96,5 bilhões de reais. Cerca de 94 bilhões de reais desses gastos adicionais foram compensados por reduções equivalentes de outras despesas. Contudo, 2,5 bilhões de reais não foram compensados por cortes adicionais de despesas conforme prevê a lei orçamentária, como destacou o economista Felipe Salto em artigo recente. De acordo com o artigo 4 da Lei 13.115 de 2015, a lei orçamentária, “fica autorizada a abertura de créditos suplementares, restritos aos valores constantes desta Lei, excluídas as alterações decorrentes de créditos adicionais, desde que as alterações promovidas na programação orçamentária sejam compatíveis com a obtenção da meta de resultado primário estabelecida para o exercício de 2015 e sejam observados o disposto no parágrafo único do art. 8 da LRF e os limites e as condições estabelecidos neste artigo, vedado o cancelamento de valores incluídos ou acrescidos em decorrência da aprovação de emendas individuais, para o atendimento de despesas”.

Ou seja, enquanto tramitava no Congresso a aprovação da mudança da meta fiscal de 2015, o governo emitia decretos autorizando despesas que não apenas infringiriam a meta vigente, mas também a própria lei orçamentária, a LOA de 2015.

Por fim, a selvageria das selvagerias, a indecência mais indecente. Em 2015, o governo usou 35 bilhões de reais do FGTS para fins diversos. O fundo dos trabalhadores brasileiros, a poupança forçada que qualquer pessoa assalariada no Brasil possui, foi indevidamente usado, pasmem, pelo governo que se diz “defensor do trabalhador”. Sabem quanto do FGTS foi usado ao longo do primeiro governo Lula para tais fins? Zero. Nem um tostão. Nem um centavo foi, também, a prática do governo Fernando Henrique Cardoso. Para quê foram usados os recursos do FGTS? Foi tamanha a confusão do governo Dilma que é difícil rastrear a dinheirama. De todo modo, parte relevante certamente deve ter sido usada para financiar a quantia inimaginável de 500 bilhões de reais em financiamentos para o BNDES entre 2010 e 2015.

Sentiram-se aviltados? Vísceras contorcidas ante a constatação de tamanha incompetência e descaso com o dinheiro do seu esforço, dos seus impostos?

Pois, saibam: somos todos Bombita.

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