Escolhas impalatáveis: o legado de nossos desvarios
Disse John Kenneth Galbraith que “a política não é a arte do possível; ela consiste em escolher entre o desastroso e o impalatável”. O mesmo pode ser dito da política econômica, sobretudo em tempos de crise: trata-se não de optar entre os supostos caminhos possíveis – crises não permitem esse luxo – mas, de separar […]
Da Redação
Publicado em 28 de outubro de 2016 às 12h03.
Última atualização em 22 de junho de 2017 às 17h54.
Disse John Kenneth Galbraith que “a política não é a arte do possível; ela consiste em escolher entre o desastroso e o impalatável”. O mesmo pode ser dito da política econômica, sobretudo em tempos de crise: trata-se não de optar entre os supostos caminhos possíveis – crises não permitem esse luxo – mas, de separar opções desastrosas daquelas que são “apenas” impalatáveis. Isso, entretanto, não significa subscrever ao cansativo bordão de que “o ótimo é inimigo do bom”, clichê que tem sido usado por muitos para falar sobre assuntos diversos, a PEC dos Gastos em particular.
Sempre tive certo fascínio mórbido por crises, razão para que as tenha escolhido como objeto de estudo desde que, quando ainda no curso de graduação, resolvi ler o então obscuro Hyman Minsky para escrever sobre o crédito ao consumidor no Brasil. De lá para cá, Minsky saiu do obscurantismo por terem sido suas teses a respeito das crises validadas pela hecatombe de 2008. Em míudos, escreveu Minsky que crises surgem de forma endógena quando, ao atravessar momento auspicioso, credores, tomadores de crédito, empresas, consumidores, governos, assumem posturas cada vez mais complacentes em relação à tomada de risco.
Desse modo, à medida em que avança a expansão econômica, os balanços desses atores tornam-se cada vez mais frágeis, crescentemente vulneráveis a uma virada de cenário – na visão de Minsky, é durante um período de bonança econômica que aumenta, paulatinamente, a fragilidade financeira da economia. Tal fragilidade pode estar no balanço das famílias e das instituições financeiras, como na crise de 2008, ou no balanço do governo, como é hoje o caso do Brasil.
Partindo dessa ideia, já faz muitos anos desenvolvi alguns modelos para entender como choques positivos podem induzir o aumento da fragilidade financeira, levando, possivelmente, a uma crise generalizada. Na época, fazia meu doutorado na London School of Economics and Political Science. A inovação era olhar para as crises não como resultado de choques negativos que fragilizassem balanços, mas como provenientes de choques positivos que, da mesma forma, fragilizavam balanços e aumentavam as chances de uma crise financeira. O choque positivo estava aberto a interpretações, mas, na época, pensava nos fortes fluxos de capitais que deslocaram-se para os países emergentes nos anos 90 e que acabaram por caracterizar proliferação de ciclos de “boom-bust” ao redor do planeta.
A dramática situação da economia brasileira encaixa-se bem nessa maneira de olhar as crises. Nosso choque positivo foi a alta dos preços das matérias-primas que marcou os anos compreendidos entre 2004 e 2011, o expressivo crescimento da China nesse mesmo período, e os fluxos de capital que vinham para o país. Ao longo de todos esses anos, o governo tornou-se cada vez mais complacente. Conduziu bem a economia por breve período – entre 2003 e 2006 – mas tão logo percebeu que a bonança seria eterna enquanto durasse, a escalada da leniência prevaleceu.
Riscos foram tomados em diversas áreas – está aí o fracasso da política de campeões nacionais, a débâcle das empresas X, da Oi, e, agora, da JBS, para comprovar o erro de resvalar para a complacência na concessão do crédito público. Está aí, também, o drama da Caixa Econômica Federal que empurrada foi para conceder empréstimos em áreas onde sua perícia era limitada – diz a nova diretoria da Caixa que o banco deverá precisar de aportes substanciais do governo nos próximos anos. Estão aí as empresas estatais arrombadas e em estado de calamidade. Por fim, está aí, em frangalhos, o balanço do governo, a catástrofe das contas públicas brasileiras.
Quando se adota olhar de prazo mais longo para avaliar as causas da crise brasileira, fica evidente o tamanho dos desafios. Fica igualmente evidente que a recuperação desse desastre de quase década e meia de gestação será penoso, em desacordo com as projeções mais otimistas dos mercados. Reparem que sequer tratei dos riscos políticos que ainda poderemos ter pela frente, e de como eles podem desarticular o esforço da retomada.
Foi desse modo que hoje chegamos às escolhas impalatáveis de política econômica, impalatáveis uma vez que são, sim, penosas para a população no curto prazo a despeito de potenciais efeitos benéficos no futuro. A PEC dos Gastos é amarga, ainda que necessária – a opção de não fazê-la seria desastrosa. Mais amarga é a reforma da Previdência, que terá, sim, de promover a desvinculação dos benefícios em relação ao salário mínimo. É essa desvinculação, na verdade, a medida mais importante de todas, aquela que terá chances de alinhar o aumento dos gastos com a real capacidade de pagamento da economia. É preciso tratar com clareza a questão da desvinculação, quiçá com mais clareza do que o governo tem discutido. Mas, o momento é difícil. Tão difícil que a PEC dos Gastos será aprovada não porque o “ótimo é inimigo do bom”, mas porque foi a escolha impalatável que sobrou ante os escombros de nossos desvarios. Que algo melhor do que isso possa ser dito a respeito da reforma da Previdência.
Disse John Kenneth Galbraith que “a política não é a arte do possível; ela consiste em escolher entre o desastroso e o impalatável”. O mesmo pode ser dito da política econômica, sobretudo em tempos de crise: trata-se não de optar entre os supostos caminhos possíveis – crises não permitem esse luxo – mas, de separar opções desastrosas daquelas que são “apenas” impalatáveis. Isso, entretanto, não significa subscrever ao cansativo bordão de que “o ótimo é inimigo do bom”, clichê que tem sido usado por muitos para falar sobre assuntos diversos, a PEC dos Gastos em particular.
Sempre tive certo fascínio mórbido por crises, razão para que as tenha escolhido como objeto de estudo desde que, quando ainda no curso de graduação, resolvi ler o então obscuro Hyman Minsky para escrever sobre o crédito ao consumidor no Brasil. De lá para cá, Minsky saiu do obscurantismo por terem sido suas teses a respeito das crises validadas pela hecatombe de 2008. Em míudos, escreveu Minsky que crises surgem de forma endógena quando, ao atravessar momento auspicioso, credores, tomadores de crédito, empresas, consumidores, governos, assumem posturas cada vez mais complacentes em relação à tomada de risco.
Desse modo, à medida em que avança a expansão econômica, os balanços desses atores tornam-se cada vez mais frágeis, crescentemente vulneráveis a uma virada de cenário – na visão de Minsky, é durante um período de bonança econômica que aumenta, paulatinamente, a fragilidade financeira da economia. Tal fragilidade pode estar no balanço das famílias e das instituições financeiras, como na crise de 2008, ou no balanço do governo, como é hoje o caso do Brasil.
Partindo dessa ideia, já faz muitos anos desenvolvi alguns modelos para entender como choques positivos podem induzir o aumento da fragilidade financeira, levando, possivelmente, a uma crise generalizada. Na época, fazia meu doutorado na London School of Economics and Political Science. A inovação era olhar para as crises não como resultado de choques negativos que fragilizassem balanços, mas como provenientes de choques positivos que, da mesma forma, fragilizavam balanços e aumentavam as chances de uma crise financeira. O choque positivo estava aberto a interpretações, mas, na época, pensava nos fortes fluxos de capitais que deslocaram-se para os países emergentes nos anos 90 e que acabaram por caracterizar proliferação de ciclos de “boom-bust” ao redor do planeta.
A dramática situação da economia brasileira encaixa-se bem nessa maneira de olhar as crises. Nosso choque positivo foi a alta dos preços das matérias-primas que marcou os anos compreendidos entre 2004 e 2011, o expressivo crescimento da China nesse mesmo período, e os fluxos de capital que vinham para o país. Ao longo de todos esses anos, o governo tornou-se cada vez mais complacente. Conduziu bem a economia por breve período – entre 2003 e 2006 – mas tão logo percebeu que a bonança seria eterna enquanto durasse, a escalada da leniência prevaleceu.
Riscos foram tomados em diversas áreas – está aí o fracasso da política de campeões nacionais, a débâcle das empresas X, da Oi, e, agora, da JBS, para comprovar o erro de resvalar para a complacência na concessão do crédito público. Está aí, também, o drama da Caixa Econômica Federal que empurrada foi para conceder empréstimos em áreas onde sua perícia era limitada – diz a nova diretoria da Caixa que o banco deverá precisar de aportes substanciais do governo nos próximos anos. Estão aí as empresas estatais arrombadas e em estado de calamidade. Por fim, está aí, em frangalhos, o balanço do governo, a catástrofe das contas públicas brasileiras.
Quando se adota olhar de prazo mais longo para avaliar as causas da crise brasileira, fica evidente o tamanho dos desafios. Fica igualmente evidente que a recuperação desse desastre de quase década e meia de gestação será penoso, em desacordo com as projeções mais otimistas dos mercados. Reparem que sequer tratei dos riscos políticos que ainda poderemos ter pela frente, e de como eles podem desarticular o esforço da retomada.
Foi desse modo que hoje chegamos às escolhas impalatáveis de política econômica, impalatáveis uma vez que são, sim, penosas para a população no curto prazo a despeito de potenciais efeitos benéficos no futuro. A PEC dos Gastos é amarga, ainda que necessária – a opção de não fazê-la seria desastrosa. Mais amarga é a reforma da Previdência, que terá, sim, de promover a desvinculação dos benefícios em relação ao salário mínimo. É essa desvinculação, na verdade, a medida mais importante de todas, aquela que terá chances de alinhar o aumento dos gastos com a real capacidade de pagamento da economia. É preciso tratar com clareza a questão da desvinculação, quiçá com mais clareza do que o governo tem discutido. Mas, o momento é difícil. Tão difícil que a PEC dos Gastos será aprovada não porque o “ótimo é inimigo do bom”, mas porque foi a escolha impalatável que sobrou ante os escombros de nossos desvarios. Que algo melhor do que isso possa ser dito a respeito da reforma da Previdência.