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É ortodoxia, ou é só retranca mesmo?

Passado o impeachment de Dilma Rousseff, ainda que com alguns atropelos constitucionais no controvertido fatiamento dos votos, há alento em reconhecer que finalmente é possível desatar as amarras da análise de conjuntura política para refletir sobre a situação do País. Não que a política deixe de apresentar nós consideráveis à implantação daquilo que se pretende […]

COMITÊ DE POLÍTICA MONETÁRIA: pela sexta vez consecutiva, o Copom reduziu a taxa básica de juros no país / Marcelo Camargo/ Agência Brasil
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Da Redação

Publicado em 9 de setembro de 2016 às 10h49.

Última atualização em 22 de junho de 2017 às 18h49.

Passado o impeachment de Dilma Rousseff, ainda que com alguns atropelos constitucionais no controvertido fatiamento dos votos, há alento em reconhecer que finalmente é possível desatar as amarras da análise de conjuntura política para refletir sobre a situação do País. Não que a política deixe de apresentar nós consideráveis à implantação daquilo que se pretende na área econômica. Mas, ao menos já existe espaço para transcender essa discussão e pensar sobre o que deveríamos estar fazendo para melhorar as nossas perspectivas imediatas.

Quando a equipe econômica de Temer foi anunciada, ainda em seu mandato interino, houve comemorações e euforia entre os economistas e os analistas de mercado. Finalmente estávamos a nos livrar da política econômica marcada por alto teor ideológico que caracterizou a maior parte da era Dilma Rousseff. Digo a maior parte pois, ao final de seu governo, a ex-presidente tentou implantar modelo mais ortodoxo, no linguajar corrente, ao reconhecer a necessidade de desfazer os estragos fiscais que havia perpetrado na economia brasileira. Escalado para a tarefa de reverter o gravíssimo quadro das contas públicas, Joaquim Levy não resistiu às forças ditas “heterodoxas” do partido da ex-presidente e de alguns de seus interlocutores econômicos mais próximos.

É fato que heterodoxia e ortodoxia ganharam novos contornos nos governos petistas – heterodoxia passou a ser uma mistura de narrativas ideológicas com pouco embasamento empírico, enquanto ortodoxia era compreendida como o tal “neoliberalismo” que ninguém sabe definir. Curioso é constatar que antes de Dilma e sua turma, antes mesmo de Lula e sua turma, ortodoxia e heterodoxia não tinham, necessariamente, conotações pejorativas. O Brasil, PhD em crises, experimentou em seu passado diversas formas de lidar com elas, as crises. Muitas iniciativas fracassaram, outras prosperaram. A mais bem sucedida de todas, o Plano Real, continha elementos que, hoje, os rotuladores de plantão certamente chamariam de heterodoxos, como se defeituosos fossem.

Do mesmo modo, países diretamente atingidos pela crise de 2008 foram forçados a inovar, a repensar conceitos e ideias preconcebidas sobre o funcionamento da economia e da política econômica. Poucas áreas viram maiores tranformações nos anos pós-crise do que a política monetária. O uso disseminado das chamadas políticas monetárias não-convencionais pelos principais bancos centrais – a qualificação “não-convencional” é outra forma de dizer “heterodoxa”, uma vez que foge da doutrina econômica estabelecida – está aí para atestar que o pensamento mainstream mudou. A moeda não é neutra, como pensávamos antigamente, isto é, a política monetária pode, sim, influenciar o crescimento de médio e longo prazo sem gerar inflação, necessariamente.

A vasta literatura empírica sobre os Quantitative Easings, o inchaço dos balanços dos Bancos Centrais por meio de compras de títulos públicos quando a taxa de juros está muito próxima de zero, revela que a política monetária tem mais alcance do que se imaginava. O mesmo pode ser dito dos experimentos recentes com taxas de juros nominais negativas, isto é, de exigir do credor um pagamento pelo privilégio de emprestar, invertendo a lógica convencional.

Diante dessas constatações, como pensar sobre a gravíssima crise brasileira? Como refletir sobre a política macroeconômica em momento de absoluta extraordinariedade? É evidente que as reformas fiscais são urgentes e absolutamente necessárias para restaurar a higidez fiscal e a sustentabilidade do País. Mas, reformas fiscais, mesmo nos melhores cenários, sofrem do que os economistas chamam de defasagem de implantação: o tempo decorrido entre a elaboração das medidas e sua adoção, uma vez que têm de passar pela aprovação do congresso, têm de ser debatidas pela sociedade, enfim, enfrentam diversos obstáculos que prolongam sua impantação. Não é preciso dizer que, hoje, não estamos no melhor cenário político, e, que, portanto, a defasagem natural de implantação é bem maior do que o “normal”.

Vale, portanto, considerar o que mais poderia ser feito. É natural que exista resistência a certas ideias, sobretudo depois do total descalabro econômico do governo Dilma. Contudo, a resistência não deve ceder à tentação da retranca. Há, hoje, quem considere “ortodoxalmente natural” o Banco Central brasileiro manter as taxas de juros em 14,25% ao ano. Afinal, a inflação está cedendo lentamente, há inércia, o risco de recrudescimento inflacionário é real. Porém, no espírito de pensar sobre a política econômica em momentos extraordinários, convido os leitores a deixar de lado o pensamento retranqueiro e refletir sobre a hipótese de reduzir rapidamente os juros, ainda que a inflação não esteja se comportando a contento. Convido ainda os leitores a pensar sobre se e como parte de nossas reservas internacionais poderiam ser usadas para mitigar o risco cambial no financiamento aos projetos de infraestrutura.

Ou seja, uma vez que queremos estimular os investimentos em infraestrutura, que saibamos que parte relevante desses recursos terá origem externa, que haverá, portanto, um descasamento entre o financiamento em moeda estrangeira e os fluxos de caixa em reais, não seria o momento de usar parte das reservas para prover proteção cambial a esses investidores?

Situações extraordinárias exigem pensamento criativo e o abandono da ortodoxia retranqueira, como o próprio País já revelou a si no passado. A hora – para usar um clichê tão adequado à ortodoxia defasada – pede pensar fora da caixa de papelão, do livro-textão.

MONICA-DE-BOLLE

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Passado o impeachment de Dilma Rousseff, ainda que com alguns atropelos constitucionais no controvertido fatiamento dos votos, há alento em reconhecer que finalmente é possível desatar as amarras da análise de conjuntura política para refletir sobre a situação do País. Não que a política deixe de apresentar nós consideráveis à implantação daquilo que se pretende na área econômica. Mas, ao menos já existe espaço para transcender essa discussão e pensar sobre o que deveríamos estar fazendo para melhorar as nossas perspectivas imediatas.

Quando a equipe econômica de Temer foi anunciada, ainda em seu mandato interino, houve comemorações e euforia entre os economistas e os analistas de mercado. Finalmente estávamos a nos livrar da política econômica marcada por alto teor ideológico que caracterizou a maior parte da era Dilma Rousseff. Digo a maior parte pois, ao final de seu governo, a ex-presidente tentou implantar modelo mais ortodoxo, no linguajar corrente, ao reconhecer a necessidade de desfazer os estragos fiscais que havia perpetrado na economia brasileira. Escalado para a tarefa de reverter o gravíssimo quadro das contas públicas, Joaquim Levy não resistiu às forças ditas “heterodoxas” do partido da ex-presidente e de alguns de seus interlocutores econômicos mais próximos.

É fato que heterodoxia e ortodoxia ganharam novos contornos nos governos petistas – heterodoxia passou a ser uma mistura de narrativas ideológicas com pouco embasamento empírico, enquanto ortodoxia era compreendida como o tal “neoliberalismo” que ninguém sabe definir. Curioso é constatar que antes de Dilma e sua turma, antes mesmo de Lula e sua turma, ortodoxia e heterodoxia não tinham, necessariamente, conotações pejorativas. O Brasil, PhD em crises, experimentou em seu passado diversas formas de lidar com elas, as crises. Muitas iniciativas fracassaram, outras prosperaram. A mais bem sucedida de todas, o Plano Real, continha elementos que, hoje, os rotuladores de plantão certamente chamariam de heterodoxos, como se defeituosos fossem.

Do mesmo modo, países diretamente atingidos pela crise de 2008 foram forçados a inovar, a repensar conceitos e ideias preconcebidas sobre o funcionamento da economia e da política econômica. Poucas áreas viram maiores tranformações nos anos pós-crise do que a política monetária. O uso disseminado das chamadas políticas monetárias não-convencionais pelos principais bancos centrais – a qualificação “não-convencional” é outra forma de dizer “heterodoxa”, uma vez que foge da doutrina econômica estabelecida – está aí para atestar que o pensamento mainstream mudou. A moeda não é neutra, como pensávamos antigamente, isto é, a política monetária pode, sim, influenciar o crescimento de médio e longo prazo sem gerar inflação, necessariamente.

A vasta literatura empírica sobre os Quantitative Easings, o inchaço dos balanços dos Bancos Centrais por meio de compras de títulos públicos quando a taxa de juros está muito próxima de zero, revela que a política monetária tem mais alcance do que se imaginava. O mesmo pode ser dito dos experimentos recentes com taxas de juros nominais negativas, isto é, de exigir do credor um pagamento pelo privilégio de emprestar, invertendo a lógica convencional.

Diante dessas constatações, como pensar sobre a gravíssima crise brasileira? Como refletir sobre a política macroeconômica em momento de absoluta extraordinariedade? É evidente que as reformas fiscais são urgentes e absolutamente necessárias para restaurar a higidez fiscal e a sustentabilidade do País. Mas, reformas fiscais, mesmo nos melhores cenários, sofrem do que os economistas chamam de defasagem de implantação: o tempo decorrido entre a elaboração das medidas e sua adoção, uma vez que têm de passar pela aprovação do congresso, têm de ser debatidas pela sociedade, enfim, enfrentam diversos obstáculos que prolongam sua impantação. Não é preciso dizer que, hoje, não estamos no melhor cenário político, e, que, portanto, a defasagem natural de implantação é bem maior do que o “normal”.

Vale, portanto, considerar o que mais poderia ser feito. É natural que exista resistência a certas ideias, sobretudo depois do total descalabro econômico do governo Dilma. Contudo, a resistência não deve ceder à tentação da retranca. Há, hoje, quem considere “ortodoxalmente natural” o Banco Central brasileiro manter as taxas de juros em 14,25% ao ano. Afinal, a inflação está cedendo lentamente, há inércia, o risco de recrudescimento inflacionário é real. Porém, no espírito de pensar sobre a política econômica em momentos extraordinários, convido os leitores a deixar de lado o pensamento retranqueiro e refletir sobre a hipótese de reduzir rapidamente os juros, ainda que a inflação não esteja se comportando a contento. Convido ainda os leitores a pensar sobre se e como parte de nossas reservas internacionais poderiam ser usadas para mitigar o risco cambial no financiamento aos projetos de infraestrutura.

Ou seja, uma vez que queremos estimular os investimentos em infraestrutura, que saibamos que parte relevante desses recursos terá origem externa, que haverá, portanto, um descasamento entre o financiamento em moeda estrangeira e os fluxos de caixa em reais, não seria o momento de usar parte das reservas para prover proteção cambial a esses investidores?

Situações extraordinárias exigem pensamento criativo e o abandono da ortodoxia retranqueira, como o próprio País já revelou a si no passado. A hora – para usar um clichê tão adequado à ortodoxia defasada – pede pensar fora da caixa de papelão, do livro-textão.

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