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E agora, Emergentes?

“Sua doce palavra, Seu instante de febre, Sua gula e jejum, Sua biblioteca, Sua lavra de ouro, Seu terno de vidro, Seu ódio – e agora?” Carlos Drummond de Andrade O Brasil não é o único, embora esteja entre os mais afetados. O instante de febre, febre de crescimento, já passou – da gula ao […]

TRUMP: é um equívoco resvalar para a complacência, para o clichê que reza “campanha é campanha, governo é governo” (Dominick Reuter/Reuters)
TRUMP: é um equívoco resvalar para a complacência, para o clichê que reza “campanha é campanha, governo é governo” (Dominick Reuter/Reuters)
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Monica de Bolle

Publicado em 18 de novembro de 2016 às, 10h23.

Última atualização em 22 de junho de 2017 às, 18h25.

“Sua doce palavra,
Seu instante de febre,
Sua gula e jejum,
Sua biblioteca,
Sua lavra de ouro,
Seu terno de vidro,
Seu ódio – e agora?”

Carlos Drummond de Andrade

O Brasil não é o único, embora esteja entre os mais afetados. O instante de febre, febre de crescimento, já passou – da gula ao jejum parece termos ido em piscar de olhos, embora a descontrução do País tenha levado mais tempo. Ternos de vidro na América Latina e em outras regiões espatifam-se ante as incertezas e os temores a respeito da gestão de Donald Trump. Donald Trump, que, passados dez dias das eleições, emite sinais conflitantes sobre a composição de sua equipe e o teor de suas medidas.

Em artigo recente para o Estado de São Paulo, discorri sobre alguns cenários possíveis para a economia americana com Trump na presidência. O mais otimista previa que a retórica da campanha seria atenuada, que suas promessas mais inflamadas em relação ao comércio internacional, às leis de imigração, ao fechamento de fronteiras, ao fim do multilateralismo, não seriam seguidas à risca, que cederiam à implacável realidade. Supondo, é claro, que a realidade seja mesmo implacável, e que a fé que muitos têm em relação aos pesos e contrapesos da democracia americana imperem, segurando os piores impulsos caso o presidente-eleito não se revele o homem pragmático de negócios que muitos imaginam que ele seja.

Nesse cenário, haveria forte expansão fiscal propelida pela queda de impostos sobre os mais ricos, e também pelo aumento trilionário de gastos em infraestrutura. Nesse cenário, tais medidas resultariam em mais crescimento e mais inflação para os EUA, obrigando o Fed a agir mais rapidamente do que se antevia no mundo pré-Trump. Para os países emergentes, mais crescimento nos EUA combinado com uma elevação mais rápida dos juros é pá de cal para a lavra de ouro. Fluxos de capitais deslocar-se-iam rapidamente para a economia americana – como começou a acontecer – ante a perspectiva de maior crescimento. Moedas emergentes desvalorizar-se-iam – como começou a acontecer – ante a perspectiva de juros maiores nos EUA e menor atratividade dos ativos de países emergentes.

O segundo cenário que discuti abordava a possibilidade de que Trump fizesse sua expansão fiscal, mas que fosse também mais protecionista e, portanto, mais fiel à sua retórica de campanha, embora não chegasse as vias de fato de rasgar o Nafta ou retirar os EUA da Organização Mundial do Comércio. Nesse cenário, haveria espécie de terceira lei de Newton: a expansão fiscal seria força para impulsionar o crescimento, enquanto o protecionismo exerceria força contrária em algum grau. O crescimento, portanto, seria menor do que o previsto, porém a inflação poderia ser em tese maior – a terceira lei de Newton não vale para a inflação, já que protecionismo e expansão fiscal aumentam preços. Esse quadro é igualmente traumático para os países emergentes, já que uma semi-estagflação americana traria incertezas sobre a higidez da economia global, e os mesmos efeitos sobre as taxas de juros americanas e a saída de capitais desses países.

O terceiro cenário é a catástrofe, o caso em que todos os que apostam em Trump moderado errarão, e que o presidente-eleito cumprirá à risca suas promessas de campanha. Nesse cenário, uma recessão nos EUA é possível, um grande baque nas perspectivas de crescimento global é possível. Emergentes vulneráveis sofreriam ao redor do planeta. Afinal, o protecionismo extremado defendido por Trump é destruidor de empregos, não o contrário.

O que nenhum desses cenários trata com a devida atenção, o que nenhum economista vem tratando com a devida atenção, é que, aconteça o que acontecer, a eleição de Trump mudou radicalmente a “ordem natural das coisas” nos EUA. Antes de Trump, era até possível separar a política da economia – razão para que os livros-texto que instruem legiões de economistas, a maioria de autoria de economistas norte-americanos, fizesse tal separação com a maior naturalidade. O que se vê, entretanto, nesses primeiros dias pós-Trump é que a economia deverá sucumbir à política, como nós, provenientes de emergentes, sabemos ser sempre o caso. Ou seja, a eleição de Trump tornou a maior economia do planeta muito parecida com o que estamos acostumados a ver ao sul do equador. Serão as palavras de Trump, não as de Janet Yellen, a ditar os rumos dos mercados.

Há muito ainda para ser digerido e pensado no mundo pós-Trump. Por essa razão, é um equívoco resvalar para a complacência, para o clichê que reza “campanha é campanha, governo é governo”.

E agora, Emergentes? E agora, Brasil?