Você sente sua privacidade invadida pelo celular?
Desde a pandemia, qualquer tipo de pudor desapareceu de vez. Hoje, seu número de celular é compartilhado como se fosse uma commodity
Publicado em 22 de setembro de 2020 às, 08h01.
Em tese, a Lei Geral de Proteção de Dados já está em vigor – em regime de soft opening, é verdade – mas o volume de ligações comerciais parece ter aumentado nos últimos dias. Sou uma vítima contumaz de chamadas de construtoras que querem me vender algum imóvel, seja para morar ou para investir. Confesso que, das primeiras vezes que recebi esse tipo de ligação, minha reação era rosnar para o interlocutor ou simplesmente desligar. Depois de algum tempo, contudo, imaginei que aquela pessoa que me ligava não tinha outra opção de trabalho e estava seguindo ordens. Isso faz cerca de seis meses. Desde então, uso toda a minha paciência e educação para recursar polidamente a oferta imobiliária.
Desde sexta-feira, contudo, passei a receber outro tipo de ligação – a de consultores que me propõem a troca de meu plano de saúde por outro, de condições semelhantes e um preço mais competitivo do que o atual. Recusei a oferta nas duas primeiras ocasiões, mas fiquei curioso na terceira. A moça parecia conhecer detalhes do meu convênio médico e, assim, aceitei que ela me enviasse uma proposta via WhatsApp. Quando chegou a apresentação, tomei um susto. As coberturas era quase as mesmas e a proposta contemplava uma família exatamente com o perfil da minha.
Fiquei encafifado. Quem passou esse tipo de informação? A seguradora atual é que não faria isso. Seria o caso de espionagem industrial ou há algum prestador de serviço que está sendo infiel? Dificilmente saberei. Estava em uma videoconferência quando a tal consultora começou a me ligar sem parar. Na terceira chamada, ela foi bloqueada.
Tenho uma linha de telefone celular desde 1993, época da antiga Telesp. A linha, o aparelho e o serviço custavam os tubos e o sistema era instável e nada confiável. Mas, desde aquele tempo e até recentemente, havia um certo pudor de ligar diretamente no celular de alguém, como se fosse uma invasão de privacidade não recomendável.
Aos poucos, no entanto, as pessoas foram se tornando mais ousadas e perdendo a vergonha de ligar diretamente através de um aparelho que, em tese, não conta com o filtro de uma secretária ou de um assessor.
Desde a pandemia, qualquer tipo de pudor desapareceu de vez. Hoje, seu número de celular é compartilhado como se fosse uma commodity – e não um ativo de importância. Os grupos de WhatsApp se transformaram em grandes fornecedores de números alheios, especialmente o de pessoas famosas.
O quê? Isso nunca aconteceu com você? Há inúmeras pessoas famosas que viram seus números caírem na rede por conta de gente que anotou a linha e a passou para frente.
Por conta disso, tenho percebido que alguns amigos começaram a manter dois aparelhos – um para amigos e família e outro para trabalho. O segundo é monitorado com maior cuidado e números desconhecidos não são atendidos.
Quem é saudosista e acredita que o celular é algo particular e restrito a poucas pessoas precisa reavaliar suas posições. O seu número, hoje, é de domínio público. E mais: desconhecidos ligam não só para vender algo, mas também existem aqueles que desejam comprar alguma coisa de você. São indivíduos que pediram e receberam uma recomendação acompanhada de um número. Os mais discretos preferem uma abordagem inicial pelo WhatsApp. Já os mais afoitos optam por uma ligação mesmo.
Este talvez seja o método mais papai e mamãe de invasão da privacidade – há outros piores, como os mecanismos de geotracking, aplicativos que podem roubar dados, redes de wi-fi sem segurança e outros métodos.
Existe aqui claramente um conflito de gerações: os mais velhos se incomodam em ser abordados diretamente. Já os mais jovens não se importam e também não hesitam em procurar outras pessoas diretamente pelo celular. Trata-se de algo que foi percebido recentemente pelo advogado americano Alan Dershowitz: “Estamos observando nossa privacidade diminuir não pela lei, mas por jovens que não querem valorizá-la”.