Sem Mattar e Uebel, o governo Bolsonaro deixa de ser liberal
Paulo Guedes, em tese, continua em Brasília – mas o ministro da Economia parece ser uma pálida versão de quem fundou o Instituto Millenium
felipegiacomelli
Publicado em 12 de agosto de 2020 às 07h54.
Antes de começar, um disclaimer: sou amigo de Salim Mattar e de Paulo Uebel. Os dois exerceram grande influência na elaboração daquilo que viria a ser a plataforma Money Report, que fundei em 2017 e defende a agenda liberal, a democracia e o Estado de Direito. Portanto, este texto não é exatamente imparcial. Pelo contrário, conta com doses maciças de sentimentos ligados à amizade, à lealdade e à camaradagem.
Com a saída dos dois do governo, perdeu-se completamente o DNA liberal do governo de Jair Bolsonaro . Paulo Guedes , em tese, continua em Brasília – mas o ministro da Economia parece ser uma pálida versão de quem fundou o Instituto Millenium ao lado de vários liberais e daquele que convenceu o então candidato Bolsonaro a abraçar uma agenda de estado menor e impostos cadentes.
“O poder corrompe”. Quantas vezes não ouvimos essa frase? Hoje, pela manhã, ela me veio à cabeça. Pode-se entender “corrupção” como algo simplesmente voltado à cobrança de propina. Mas olhemos outros significados que estão no dicionário Houaiss. Há uma definição que se destaca: adulteração das características originais de algo.
A saída de Mattar e Uebel adultera totalmente a característica original do governo e mostra que Guedes tomou gosto pelo poder e, assim, permanecer na Esplanada dos Ministérios se transformou em sua principal missão. A equipe econômica original vai ficando pelo caminho. Perde-se o viço, mas principalmente vê-se o propósito que unia este time simplesmente implodir.
Há muitos que confundem o liberalismo com a definição do próprio capitalismo – mas não é bem assim. Há uma diferença básica. Todo liberal é capitalista, mas nem todo capitalista é liberal. Tome-se o exemplo dos governos militares que tivemos entre 1964 e 1985. Todos localizados, no espectro ideológico, à direita. Tivemos alguns liberais entre seus comandantes da economia. Roberto Campos, Hélio Beltrão (pai do homônimo presidente do Instituto Mises Brasil) e Mário Henrique Simonsen (vá lá, talvez mais um economista brilhante e genial do que um liberal propriamente dito) foram alguns desses nomes.
Mas os militares ficaram marcados mesmo pela forte interferência na economia. Um dos marcos desta estratégia foi a tentativa de esticar o Milagre Econômico, perpetrada pelo então czar da Fazenda, Antonio Delfim Netto. Com o choque do petróleo, em 1973, a economia brasileira iria sofrer – mas Delfim preferiu endividar o país, subsidiando a gasolina, do que deixar as leis de mercado atuarem como reguladoras naturais da oferta e da demanda. Uma decisão irresponsável e keynesiana da qual demoramos muito para nos recuperar.
Ocorre que o presidente Bolsonaro foi eleito com 57 milhões de votos também por conta de uma agenda liberal – dentro da qual um grande destaque é (ou era) a privatização. Se avançarmos em direção a um programa de governo no qual o número de privatizações diminuirá, a reforma administrativa for engavetada de vez e a reforma tributária gerar aumento fiscal, estaremos diante de um estelionato eleitoral inédito.
Ontem à noite, em entrevista à CNN, Salim Mattar disse vir da iniciativa privada e, portanto, ter dificuldade em se adaptar à lentidão da máquina pública. “Chegou o meu timing”, afirmou. “Quando fui convidado, o meu objetivo foi privatizar. Mas o fato é que quem dita o ritmo é a política, que não tem interesse nisso”.
Mattar ainda disse o seguinte: “A máquina pública cria um emaranhado legal e jurídico que torna o processo muito lento. Os Correios, por exemplo, são o exemplo de uma empresa que, no setor privado, demoraria dois meses para ser vendida; no governo, vai levar 28 meses”. No balanço final de um ano e meio de trabalho, o agora ex-secretário afirma que deixa o legado de 150 bilhões de ativos vendidos e 84 ex-estatais.
Quando ouvimos menções à política e à máquina pública, é difícil não pensar no Centrão, que firmou uma aliança com o governo há pouco tempo. Neste grupo, a palavra “privatização” soa quase que como uma blasfêmia, dado o caráter fisiológico destes políticos. Todos são conhecidos por um voraz apetite em preencher cargos públicos. Com menos estatais, o número de vagas disponíveis diminui sensivelmente – e nessa equação simples está a raiz do processo de fritura pelo qual os dois secretários passaram.
Paulo Uebel, o outro liberal que deixa o governo, nasceu no Rio Grande do Sul – mas é tão discreto que parece ser conterrâneo do mineiro Salim. É um executivo de excelente formação e com grande capacidade de realização. Sua saída tem mais a ver com os entraves criados em torno da reforma administrativa, mas a bala que o derrubou tem origem na mesma arma que mirou em Salim – a carabina do Centrão.
A reforma administrativa é algo tão importante e urgente quanto a privatização. Em editorial publicado hoje no jornal O Globo, um estudo do economista Daniel Duque mostra que trabalhadores da iniciativa privada recebem em média 21% a menos do que antes da pandemia e sua jornada é 25 % menor. Os servidores públicos, no entanto, tiveram uma redução salarial de 3 % e sua carga de trabalho é 29 % menor. Esses dados mostram como o Estado pesado protege sua própria estrutura e precisa de uma chacoalhada tamanho família – que, infelizmente, não deve ocorrer tão cedo, se é que vai acontecer nesta gestão.
Nesta quarta-feira, em artigo publicado na Folha de S. Paulo, o articulista Helio Beltrão, do Instituto Mises Brasil, chama Paulo Guedes de “liberal em desconstrução”. A saída de Paulo Uebel e Salim Mattar mostram que esse processo está adiantado. Faço, assim, uma sugestão: Guedes poderia escrever um livro sobre o atual momento do governo e como extirpou o liberalismo de sua gestão durante o combate à pandemia do coronavírus. O título, aproveitando o mote dado por Fernando Henrique Cardoso nos anos 1990, já está pronto – “Esqueçam o que escrevi”.
Antes de começar, um disclaimer: sou amigo de Salim Mattar e de Paulo Uebel. Os dois exerceram grande influência na elaboração daquilo que viria a ser a plataforma Money Report, que fundei em 2017 e defende a agenda liberal, a democracia e o Estado de Direito. Portanto, este texto não é exatamente imparcial. Pelo contrário, conta com doses maciças de sentimentos ligados à amizade, à lealdade e à camaradagem.
Com a saída dos dois do governo, perdeu-se completamente o DNA liberal do governo de Jair Bolsonaro . Paulo Guedes , em tese, continua em Brasília – mas o ministro da Economia parece ser uma pálida versão de quem fundou o Instituto Millenium ao lado de vários liberais e daquele que convenceu o então candidato Bolsonaro a abraçar uma agenda de estado menor e impostos cadentes.
“O poder corrompe”. Quantas vezes não ouvimos essa frase? Hoje, pela manhã, ela me veio à cabeça. Pode-se entender “corrupção” como algo simplesmente voltado à cobrança de propina. Mas olhemos outros significados que estão no dicionário Houaiss. Há uma definição que se destaca: adulteração das características originais de algo.
A saída de Mattar e Uebel adultera totalmente a característica original do governo e mostra que Guedes tomou gosto pelo poder e, assim, permanecer na Esplanada dos Ministérios se transformou em sua principal missão. A equipe econômica original vai ficando pelo caminho. Perde-se o viço, mas principalmente vê-se o propósito que unia este time simplesmente implodir.
Há muitos que confundem o liberalismo com a definição do próprio capitalismo – mas não é bem assim. Há uma diferença básica. Todo liberal é capitalista, mas nem todo capitalista é liberal. Tome-se o exemplo dos governos militares que tivemos entre 1964 e 1985. Todos localizados, no espectro ideológico, à direita. Tivemos alguns liberais entre seus comandantes da economia. Roberto Campos, Hélio Beltrão (pai do homônimo presidente do Instituto Mises Brasil) e Mário Henrique Simonsen (vá lá, talvez mais um economista brilhante e genial do que um liberal propriamente dito) foram alguns desses nomes.
Mas os militares ficaram marcados mesmo pela forte interferência na economia. Um dos marcos desta estratégia foi a tentativa de esticar o Milagre Econômico, perpetrada pelo então czar da Fazenda, Antonio Delfim Netto. Com o choque do petróleo, em 1973, a economia brasileira iria sofrer – mas Delfim preferiu endividar o país, subsidiando a gasolina, do que deixar as leis de mercado atuarem como reguladoras naturais da oferta e da demanda. Uma decisão irresponsável e keynesiana da qual demoramos muito para nos recuperar.
Ocorre que o presidente Bolsonaro foi eleito com 57 milhões de votos também por conta de uma agenda liberal – dentro da qual um grande destaque é (ou era) a privatização. Se avançarmos em direção a um programa de governo no qual o número de privatizações diminuirá, a reforma administrativa for engavetada de vez e a reforma tributária gerar aumento fiscal, estaremos diante de um estelionato eleitoral inédito.
Ontem à noite, em entrevista à CNN, Salim Mattar disse vir da iniciativa privada e, portanto, ter dificuldade em se adaptar à lentidão da máquina pública. “Chegou o meu timing”, afirmou. “Quando fui convidado, o meu objetivo foi privatizar. Mas o fato é que quem dita o ritmo é a política, que não tem interesse nisso”.
Mattar ainda disse o seguinte: “A máquina pública cria um emaranhado legal e jurídico que torna o processo muito lento. Os Correios, por exemplo, são o exemplo de uma empresa que, no setor privado, demoraria dois meses para ser vendida; no governo, vai levar 28 meses”. No balanço final de um ano e meio de trabalho, o agora ex-secretário afirma que deixa o legado de 150 bilhões de ativos vendidos e 84 ex-estatais.
Quando ouvimos menções à política e à máquina pública, é difícil não pensar no Centrão, que firmou uma aliança com o governo há pouco tempo. Neste grupo, a palavra “privatização” soa quase que como uma blasfêmia, dado o caráter fisiológico destes políticos. Todos são conhecidos por um voraz apetite em preencher cargos públicos. Com menos estatais, o número de vagas disponíveis diminui sensivelmente – e nessa equação simples está a raiz do processo de fritura pelo qual os dois secretários passaram.
Paulo Uebel, o outro liberal que deixa o governo, nasceu no Rio Grande do Sul – mas é tão discreto que parece ser conterrâneo do mineiro Salim. É um executivo de excelente formação e com grande capacidade de realização. Sua saída tem mais a ver com os entraves criados em torno da reforma administrativa, mas a bala que o derrubou tem origem na mesma arma que mirou em Salim – a carabina do Centrão.
A reforma administrativa é algo tão importante e urgente quanto a privatização. Em editorial publicado hoje no jornal O Globo, um estudo do economista Daniel Duque mostra que trabalhadores da iniciativa privada recebem em média 21% a menos do que antes da pandemia e sua jornada é 25 % menor. Os servidores públicos, no entanto, tiveram uma redução salarial de 3 % e sua carga de trabalho é 29 % menor. Esses dados mostram como o Estado pesado protege sua própria estrutura e precisa de uma chacoalhada tamanho família – que, infelizmente, não deve ocorrer tão cedo, se é que vai acontecer nesta gestão.
Nesta quarta-feira, em artigo publicado na Folha de S. Paulo, o articulista Helio Beltrão, do Instituto Mises Brasil, chama Paulo Guedes de “liberal em desconstrução”. A saída de Paulo Uebel e Salim Mattar mostram que esse processo está adiantado. Faço, assim, uma sugestão: Guedes poderia escrever um livro sobre o atual momento do governo e como extirpou o liberalismo de sua gestão durante o combate à pandemia do coronavírus. O título, aproveitando o mote dado por Fernando Henrique Cardoso nos anos 1990, já está pronto – “Esqueçam o que escrevi”.