Ontem, sete de abril, comemorou-se o Dia do Jornalista. Muitas vezes, em um texto jornalístico, o mais importante não é o que está escrito, mas aquilo que se sugere nas entrelinhas. É o caso da origem desta data comemorativa. Em sete de abril de 1831, o imperador Dom Pedro I abdicou do trono e apontou seu filho, Pedro II, como sucessor. E o que isso tem a ver com repórteres, editores e similares? É que um dos motivos de sua renúncia foi o assassinato do jornalista Líbero Badaró, um notório crítico do Império, meses antes da abdicação. Escolheu-se, assim, um dia um tanto aleatório para se celebrar a profissão de quem muitas vezes se comunica por metáforas ou disfarça suas críticas através da narrativa de fatos incontestáveis (talvez o nascimento ou a morte de Badaró fossem mais adequados para se instituir a efeméride).
Badaró foi morto por um apoiador do Império, Henrique Stock, e – como ocorreria anos mais tarde, no atentado contra a vida de Carlos Lacerda na rua Tonelero – os dedos de acusação se viraram para o Chefe de Estado. O jornalista, que também era médico, vinha escrevendo uma série de artigos criticando a prisão de estudantes que protestavam contra o regime e pediam a instituição da República. Foi assassinado na porta de sua casa, na rua São José, no centro de São Paulo (hoje, rua Líbero Badaró).
Na prática, este jornalista perdeu a vida por conta de seu espírito crítico, uma característica que permeia o jornalismo até hoje. Temos essa peculiaridade: nosso olhar sempre é atraído por aquilo que está errado ou é mentiroso. Quando trabalhei em publicidade, durante três anos, tive uma dificuldade enorme e precisei aprender a valorizar o lado bom das coisas. Essa reciclagem teve um efeito importante em minha vida, pois reforcei a capacidade de ponderar os dois lados de uma situação. Deixei de ser pontiagudo como era no início da carreira, mas passei a fazer um jornalismo mais equilibrado (imparcialidade total, sinceramente, é algo impossível).
De qualquer forma, o jornalista tem diante de si uma tarefa inglória: trazer más notícias ou criticar os erros de líderes que contam com grande apoio popular. Na história recente, isso afetou todos os presidentes que vieram após o regime militar: José Sarney, Fernando Collor de Mello, Itamar Franco, Fernando Henrique Cardoso, Luiz Inácio Lula da Silva, Dilma Rousseff, Michel Temer e Jair Bolsonaro. Podemos escolher aleatoriamente qualquer um dos jornais de grande circulação e veremos que todos os governos foram alfinetados pelos grandes veículos de comunicação. Agora, porém, vivemos uma era na qual os apoiadores do governo dizem que os jornalistas falam mal de Bolsonaro porque não recebem verba oficial de publicidade, afirmando que antes eles apenas afagavam quem os sustentavam anteriormente.
Pois faço aqui um desafio. Procurem nas bibliotecas públicas ou no Google. Os veículos profissionais sempre foram críticos aos governantes – uns mais e outros menos, é verdade, mas dificilmente pode se chamar de chapa branca qualquer um dos grandes jornais nacionais.
Nesta semana, em um grupo de WhatsApp, vi um post sobre um vídeo no qual o comentarista de uma rede de TV elogiava o governo. “Como esse rapaz é inteligente”, opinou um dos membros. Interessante perceber como funciona a cabeça de quem consome as notícias. Alguém aparece na televisão dizendo coisas com as quais discordamos. Muitos reagem afirmando que aquele ou aquela comentarista é parcial. Mas se um outro disser algo que seja o reflexo de seu pensamento, haverá um elogio imediato. Este jornalista pode até estar sendo parcial – só que, neste caso, não há problema, pois ele pensa como você.
O bom jornalismo é aquele que tenta enxergar todo o contexto e não embarca na militância. Quando os jornalistas agem assim eles deixam de ser previsíveis, pois suas conclusões não serão óbvias. Muitas vezes, esses profissionais da comunicação têm a obrigação de contrariar a maioria das pessoas e botar seus dedos em uma ferida que poucos veem.
Frequentemente essa abordagem nos torna pessimistas ou pessoas negativas. Isso é verdade. Mas, por outro lado, estamos numa equação do tipo “ovo ou a galinha”. Boa parte da audiência de programas de rádio e de TV se sustenta por pessoas que se hipnotizam pelas chamadas notícias ruins. Assim, os veículos estão dando ao público aquilo que eles querem.
Alguns anos atrás, um vídeo com o comentário de um jornalista veterano circulou pela rede. A tese deste profissional era a de que o jornalismo tinha de ser mais positivo e construtivo. Em parte, isso é verdade. Mas o jornalista não pode ser dissociar da realidade em troca de um otimismo poliana.
Trata-se de uma profissão inebriante, mas difícil de exercê-la quando temos uma preocupação constante em sermos justos ao escrever (novamente: imparcialidade total não existe). Muitos de nós sofrem um embate diário quando se aproximam do teclado – a missão jornalística que tem de se sobrepor às opiniões pessoais. Dou aqui o exemplo de um jornalista muito talentoso, com quem trabalhei enquanto fui diretor de redação da revista Época. Embora fosse literalmente um petista de carteirinha, trouxe várias pautas e escreveu inúmeras matérias que atacavam o governo do PT, sem aliviar em nada para os grandes nomes do partido. Esse caso não é uma exceção e pude ver isso com frequência nas redações onde trabalhei (o oposto também, diga-se).
“Todos nós temos as nossas preferências e aversões. Mas, quando estamos escrevendo as notícias – quando estamos escrevendo as manchetes, não as notinhas que ficam no rodapé de uma página e sim cobrindo a política diária – é nosso dever termos certeza de que não vamos permitir que preconceitos e opiniões pessoais nos guiem. Isso é o jornalismo básico”, dizia Walter Cronkite, um dos maiores jornalistas da história americana.
Isso não quer dizer que Cronkite era infalível ou frio como gelo. Foi ele quem deu a notícia em primeira mão da morte do presidente John Fitzgerald Kennedy pela rede CBS. Após o anúncio, sua boca crispa-se, a voz embarga e os olhos ficam marejados (esta cena pode ser vista aqui). Ele, então, se recupera enquanto fala do vice-presidente Lyndon Johnson, mas deixa bem claro o impacto emocional que a morte de Kennedy teve para si. O autocontrole de Cronkite nessa hora dramática mostra a essência daquilo que todos os jornalistas, em tese, buscam: a procura incessante pelo equilíbrio, isenção e independência.
Muitos procuram se espelhar nesta fórmula. Mas são poucos, de fato, que conseguem viver sob sua égide.