Quando o jornalista escreve o que o leitor não gosta
Diferentemente de uma empresa que atua no setor de bens de consumo, o papel do jornalismo não é agradar sempre o seu consumidor
Publicado em 20 de setembro de 2020 às, 09h02.
Última atualização em 20 de setembro de 2020 às, 09h04.
Quando tinha vinte e nove anos, obtive uma promoção na Editora Abril que me colocou no rol das reuniões corporativas. Uma vez a cada dois ou três meses, vinha uma convocação interna para alguma palestra ou treinamento, aos quais eu atendia com orgulho – afinal, o convite era dirigido a poucos funcionários da empresa. Demorou um pouco para que eu percebesse que alguns desses encontros eram chatíssimos e que a presença não era exatamente obrigatória.
Mas, como disse, eu era um profissional recém-promovido e, em minha imaturidade, deixava minha vaidade me guiar mais do que o necessário nessas horas. Portanto, recebi a tal convocação e marquei a reunião na agenda. No dia e horário combinados, lá estava eu no antigo Hotel Ca’D’Oro.
Era uma espécie de treinamento, cuja dinâmica se dividia em duas partes. Na primeira, víamos um vídeo e respondíamos a um questionário, para determinar qual seria o perfil de cada um. O meu foi o de “sintetizador”, pois eu teria a capacidade de promover mudanças sem grandes rupturas, com respeito aos orçamentos e foco no resultado. Até achei interessante a definição, mas fiquei um tanto confuso, pois – até aquele momento – nunca tinha sido responsável por nenhum tipo de meta ou controle de resultados.
No segundo tempo, tivemos uma palestra. O consultor começou seu speech mostrando como todas as grandes empresas voltadas ao consumidor – Unilever, Procter & Gamble e Nestlé, por exemplo – tinham uma enorme preocupação com os anseios de seus clientes. Apresentou o número de pesquisas que uma dessas companhias fazia por ano no Brasil, tudo com o intuito de mapear aquilo que o consumidor desejava.
Depois disso, fez uma pausa e continuou em um tom triunfante: “Quantas vezes vocês ouvem o seu leitor? ”. Me lembro da reação de boa parte da sala, composta também por alguns jornalistas que ocupavam posições de chefia. Houve um frisson e muitos concordaram com o consultor, que continuou a vender seu peixe.
A palestra rolou por mais uma meia hora, até que levantei a mão e perguntei: “Mas e quando não concordamos com a opinião média do leitor?”. O palestrante segurou um risinho e rebateu: “Isso não existe”. Retruquei que, na EXAME daquela época, recebíamos muitas cartas diárias reclamando da posição da revista, que apoiava os incipientes projetos de privatização do então governo Itamar Franco (essa agenda ganharia força somente no governo seguinte, de Fernando Henrique Cardoso). Mas, naquele momento, a revista já mostrava que o Estado era paquidérmico e que precisava passar por um regime.
O consultor tentou ainda defender sua posição, quando eu fiz a última indagação: como uma revista com a fórmula editorial da EXAME poderia defender o estatismo? Houve um silêncio na sala. Neste momento, o jornalista Ricardo Setti, que na época dirigia um grupo de revistas mensais da Abril, tomou a palavra e me apoiou, afirmando que um sabão em pó pode ter sua fragrância escolhida pelos compradores, mas a ideologia da revista é algo que não poderia ficar ao sabor das pesquisas, pois, neste caso, a publicação correria o risco de perder sua identidade. Faltavam ainda quinze minutos para a reunião acabar, mas Setti decretou o final do encontro e agradeceu o representante da consultoria.
Isso não quer dizer que o mercado editorial não realize pesquisas. Pelo contrário. Quando fui diretor da revista Época, lidava frequentemente com os relatórios dessas enquetes, especialmente as qualitativas com os assinantes da semanal. Lembro de uma em particular, na qual os leitores reclamavam que a revista precisava ter mais reportagens profundas de economia, política e dos grandes problemas brasileiros. Pedi, então, que fizéssemos uma pesquisa de recall de matérias com o mesmo grupo que pedia a inclusão de grandes temas na revista (que já faziam parte da pauta, diga-se) para duas semanas adiante.
Naquela data, publicamos reportagens de fôlego sobre economia, política e grandes problemas brasileiros. Requisitei até um caderno a mais de dezesseis páginas para abrigar o conteúdo extra. Chamamos o mesmo grupo e os coordenadores de pesquisa pediram para que aquelas pessoas dissessem do que se lembravam da edição que havia sido lançada no fim de semana (era uma segunda-feira). A maior lembrança foi uma nota de Britney Spears. A segunda foi uma reportagem sobre Juliana Paes. Não disseram uma só palavra sobre as reportagens sérias e continuaram a reclamar que a revista não cobria as questões profundas enfrentadas pelo país.
Algumas pesquisas qualitativas (não todas, evidentemente) têm esse problema. Em certas ocasiões, os integrantes do grupo querem valorizar seu próprio perfil e dão respostas com algum grau de distorção. Essa história, ressalte-se, é antiga. Portanto, os institutos de pesquisas devem ter encontrado uma forma de fazer um cross-checking melhor de opiniões nos dias de hoje.
Essas duas histórias têm origem na linha editorial de uma publicação. E é isso que hoje causa discussões e certa revolta por parte de determinado grupo de leitores.
Vejo com frequência nas redes sociais gente reclamando do teor de reportagens de vários veículos. Li uma vez alguém reclamar que um determinado jornal tinha a obrigação de publicar aquilo que o público queria ler. Bem, diante disso, é o caso de perguntar: que público? Dificilmente temos uma unanimidade no Brasil. Assim, é possível que se desagrade um grupo e agrade outro. Ou sofra a rejeição de ambos. Há ainda outra questão: um veículo é privado. Portanto, pode escrever o que quiser. Não concorda com o conteúdo? Não leia, não compre, não assine. É a melhor forma de protestar.
Quando tinha dezesseis anos, o dramaturgo Plinio Marcos deu uma palestra em minha escola. Depois de dizer que um homem não precisava mais que duas calças, três camisas e quatro cuecas para se vestir (para o horror de vários alunos), pregou que o teatro tinha uma função questionadora e que tinha de ser encenado para incomodar. Perguntei algo na linha de “como assim? Não se pode agradar a gregos e troianos”. Ele deu um sorriso condescendente e soltou uma frase que me acompanha até hoje. “Não é isso”, ele disse. “É preciso desagradar a todos”.
Depois de várias décadas, editei uma reportagem sobre política (confesso que não lembro mais qual era o assunto). Por conta deste artigo, recebi críticas do PT e do PSDB, ambos inimigos figadais naquele momento. O velho Plínio Marcos veio à lembrança imediatamente, pois eu tinha conseguido desagradar os dois lados rivais da cena política. Um dos autores mais esquerdistas do teatro brasileiro tinha me dado uma lição que já dura quarenta anos.
A vida tem dessas coisas. Por isso, não se deve desqualificar a ideologia de nossos oponentes. Quando menos se espera, podemos ouvir algo interessantíssimo. Mesmo vindo de alguém que não pensa como nós.