Precisamos aproveitar o Ano-Novo para espantarmos o medo e a irresponsabilidade
Temos diante de nós a perspectiva de um novo ciclo sobre o qual depositamos nossas esperanças
Bibiana Guaraldi
Publicado em 3 de janeiro de 2021 às 10h08.
Nossa vida é regida por algo inventado pelo monge romano Dionísio Exíguo no século 6 – o calendário de 365 dias. Tornado oficial pelo Papa Gregório XIII em 1582, virou padrão adotado pela maioria dos países desde então. Hoje, por conta desta norma, podemos afirmar que o Brasil foi descoberto no dia 22 de abril de 1500 – embora, naquela época, não houvesse um consenso a respeito de que ano seria exatamente aquele em que a esquadra de Pedro Álvares Cabral realmente teria avistado a costa brasileira.
O calendário nos proporciona, de dezembro para janeiro, uma oportunidade única. A de zerarmos tudo o que vivemos de ruim no ano anterior. Temos diante de nós a perspectiva de um novo ciclo sobre o qual depositamos nossas esperanças. Em tese, nada muda entre 31 de dezembro e 1 de janeiro. Mas acordamos na manhã após o réveillon com as baterias recarregadas e com altos níveis de confiança de que a vida será melhor nos 364 dias seguintes.
Trata-se de uma oportunidade única. Imaginemos, por um momento, o que seria de nós se os meses fossem contados de forma sequencial, sem que houvesse um ciclo de doze etapas, que poderia ser fechado e reaberto. Se a contagem do tempo fosse dessa forma, teríamos uma vida sem a expectativa de vários recomeços.
Uma das expressões que mais gosto na língua inglesa é “fresh start” – a tradução comum seria a de um “novo começo”. Os americanos usam muito esse termo, ao contrário de nós, brasileiros. Mas o fato é que temos, a cada doze meses, a chance (em nossa cabeça, pelo menos) de zerar tudo e iniciar uma fase nova, um “fresh start”.
O calendário só se tornou um modelo seguido por todos (ou quase todos) após um decreto do Papa Gregório. É por isso que muitos o chamam de “gregoriano”. Mas este efeito de reinício proporcionado pela passagem de um ano para outro guarda semelhanças com outro instrumento da Igreja Católica – a confissão.
Através da confissão, o fiel obtém um salvo conduto para retomar sua vida em bases novas, desde que cumpra as orientações do ouvinte, o padre. Os pecados, assim, são lavados da alma. Para alguns, isso se traduz em redenção para uma vida espiritual mais densa. Para outros, no entanto, é uma oportunidade para incorrer novamente em atividades pecaminosas, que serão perdoadas através de uma nova confissão.
Na passagem do Ano-Novo, porém, não estamos muito preocupados em apagar o passado. Parece que os tempos ruins terminam efetivamente às 23:59 de dezembro. Sabemos, no fundo, que as coisas não são assim. Mas somos movidos a esperança e é este sentimento que nos faz acreditar em dias melhores.
A virada de 2021, no entanto, traz um cenário particularmente diferente das anteriores. Estamos vivendo um recrudescimento da pandemia, chegando a números de contágios e de mortes bastante significativos. O cenário pandêmico não ficou para trás. Pelo contrário. Está mais presente do que nunca e deve fazer uma quantidade relevante de vítimas até que o processo de imunização seja massificado. Portanto, o calendário mudou – mas pelo menos esse problema continua em pauta.
Temos, no entanto, que lidar com os negacionistas. As redes sociais mostram bastante gente repassando um post que apresenta a evolução do número de mortes, ano a ano, e, com isso, teríamos um crescimento normal entre 2020 e 2019. Assim, essa seria uma prova evidente de que os temores em torno da pandemia são exagerados. Há, no entanto, dois aspectos que precisam ser levados em consideração. O primeiro é que as pessoas ficaram mais recolhidas em 2020. Com isso, mortes decorrentes do trânsito devem ter sofrido uma queda, com a redução de automóveis em circulação. Mas o principal ponto é que o número total do ano passado não está fechado. Pelo contrário, vai subir até abril de 2021, pois vários cartórios demoram até quatro meses para repassar seus dados.
Ainda assim está desconfiado?
Vamos para o teste final. Nos dois primeiros meses da pandemia, soube, em meu universo particular (e olhe que conheço muita gente), de apenas dez casos de contaminados pela Covid-19. Houve meses em que não soube de ninguém novo. Infelizmente, desde novembro, já soube de pelo menos cinquenta contaminações e de pelo menos cinco mortes. Façam essa mesma contabilidade e verão que a situação não é simples. Ou seja, o que acontece em nossa volta é reflexo de um contexto ainda maior.
Mesmo que não ocorra o óbito, o vírus se manifesta de forma diferente de pessoa para pessoa. Tenho um amigo do mercado financeiro que está fazendo fisioterapia mesmo depois de um mês de alta, pois perdeu grande parte da musculatura. Mais um caso de pessoa próxima, que está à frente de uma autarquia estadual em São Paulo: nesta semana, chegará a um período de 50 dias de internação. Ficou duas semanas entubado e sedado. Hoje, faz fisioterapia intensa pois perdeu todos seus movimentos – seus músculos não têm força alguma. O mesmo ocorre com um empresário da construção civil, internado há três meses. Mas há vários outros que se queixaram apenas de uma dor de cabeça infernal ou da perda do olfato e do paladar, sintomas bastante comentados por aí.
Portanto, dentro deste cenário, há um elemento importante a ser levado em consideração: a imprevisibilidade. Há pessoas que não se contaminam, outras são assintomáticas, existem aquelas que têm efeitos mínimos e uma minoria que sofre muito com os sintomas. Embora seja uma minoria do ponto de vista estatístico, estamos falando, em termos numéricos, de muita gente. Aqui é que reside o perigo – de perdermos entes queridos ou de viver o pesadelo de sobrecarregar o sistema de saúde.
Um dos efeitos nefastos da pandemia é disseminação da cultura do medo. Ontem mesmo, vi um vídeo no qual um palestrante diz que a sociedade está vivendo a era do pânico (mais adiante, na gravação, o sujeito diz que não deveríamos usar máscaras e, com isso, perde a credibilidade. Como se sabe, as máscaras eliminam mais que 90 % do risco de contaminação pelo coronavírus). De qualquer forma, tirando os exageros do autor deste vídeo, fica uma pergunta importante: como sairemos da covardia para a intrepidez?
Sem pessoas corajosas, não teremos evolução, geração de riquezas ou desbravamento de novos mercados. Mas não podemos confundir o combate ao medo com a irresponsabilidade total. Largar as máscaras, neste estágio em que nem começamos o processo de vacinação, é um ato leviano e imprudente. Não podemos ser covardes, é verdade. Mas a imprudência pode custar vidas e fazer os hospitais entrarem em colapso.
Precisamos deixar o pânico de lado. Com prudência e responsabilidade. É preciso que as pessoas voltem ao seu estado normal de ponderação, sem excessos para um lado ou para outro. Negacionistas ou sanitaristas fanáticos não irão liderar a maioria da sociedade para chegarmos ao final deste processo. Precisamos de um choque de bom senso e isso precisa ocorrer agora. Vamos aproveitar a chance de um novo começo de ano para resetar os extremos e procurarmos juntos o equilíbrio e o autocontrole.
Nossa vida é regida por algo inventado pelo monge romano Dionísio Exíguo no século 6 – o calendário de 365 dias. Tornado oficial pelo Papa Gregório XIII em 1582, virou padrão adotado pela maioria dos países desde então. Hoje, por conta desta norma, podemos afirmar que o Brasil foi descoberto no dia 22 de abril de 1500 – embora, naquela época, não houvesse um consenso a respeito de que ano seria exatamente aquele em que a esquadra de Pedro Álvares Cabral realmente teria avistado a costa brasileira.
O calendário nos proporciona, de dezembro para janeiro, uma oportunidade única. A de zerarmos tudo o que vivemos de ruim no ano anterior. Temos diante de nós a perspectiva de um novo ciclo sobre o qual depositamos nossas esperanças. Em tese, nada muda entre 31 de dezembro e 1 de janeiro. Mas acordamos na manhã após o réveillon com as baterias recarregadas e com altos níveis de confiança de que a vida será melhor nos 364 dias seguintes.
Trata-se de uma oportunidade única. Imaginemos, por um momento, o que seria de nós se os meses fossem contados de forma sequencial, sem que houvesse um ciclo de doze etapas, que poderia ser fechado e reaberto. Se a contagem do tempo fosse dessa forma, teríamos uma vida sem a expectativa de vários recomeços.
Uma das expressões que mais gosto na língua inglesa é “fresh start” – a tradução comum seria a de um “novo começo”. Os americanos usam muito esse termo, ao contrário de nós, brasileiros. Mas o fato é que temos, a cada doze meses, a chance (em nossa cabeça, pelo menos) de zerar tudo e iniciar uma fase nova, um “fresh start”.
O calendário só se tornou um modelo seguido por todos (ou quase todos) após um decreto do Papa Gregório. É por isso que muitos o chamam de “gregoriano”. Mas este efeito de reinício proporcionado pela passagem de um ano para outro guarda semelhanças com outro instrumento da Igreja Católica – a confissão.
Através da confissão, o fiel obtém um salvo conduto para retomar sua vida em bases novas, desde que cumpra as orientações do ouvinte, o padre. Os pecados, assim, são lavados da alma. Para alguns, isso se traduz em redenção para uma vida espiritual mais densa. Para outros, no entanto, é uma oportunidade para incorrer novamente em atividades pecaminosas, que serão perdoadas através de uma nova confissão.
Na passagem do Ano-Novo, porém, não estamos muito preocupados em apagar o passado. Parece que os tempos ruins terminam efetivamente às 23:59 de dezembro. Sabemos, no fundo, que as coisas não são assim. Mas somos movidos a esperança e é este sentimento que nos faz acreditar em dias melhores.
A virada de 2021, no entanto, traz um cenário particularmente diferente das anteriores. Estamos vivendo um recrudescimento da pandemia, chegando a números de contágios e de mortes bastante significativos. O cenário pandêmico não ficou para trás. Pelo contrário. Está mais presente do que nunca e deve fazer uma quantidade relevante de vítimas até que o processo de imunização seja massificado. Portanto, o calendário mudou – mas pelo menos esse problema continua em pauta.
Temos, no entanto, que lidar com os negacionistas. As redes sociais mostram bastante gente repassando um post que apresenta a evolução do número de mortes, ano a ano, e, com isso, teríamos um crescimento normal entre 2020 e 2019. Assim, essa seria uma prova evidente de que os temores em torno da pandemia são exagerados. Há, no entanto, dois aspectos que precisam ser levados em consideração. O primeiro é que as pessoas ficaram mais recolhidas em 2020. Com isso, mortes decorrentes do trânsito devem ter sofrido uma queda, com a redução de automóveis em circulação. Mas o principal ponto é que o número total do ano passado não está fechado. Pelo contrário, vai subir até abril de 2021, pois vários cartórios demoram até quatro meses para repassar seus dados.
Ainda assim está desconfiado?
Vamos para o teste final. Nos dois primeiros meses da pandemia, soube, em meu universo particular (e olhe que conheço muita gente), de apenas dez casos de contaminados pela Covid-19. Houve meses em que não soube de ninguém novo. Infelizmente, desde novembro, já soube de pelo menos cinquenta contaminações e de pelo menos cinco mortes. Façam essa mesma contabilidade e verão que a situação não é simples. Ou seja, o que acontece em nossa volta é reflexo de um contexto ainda maior.
Mesmo que não ocorra o óbito, o vírus se manifesta de forma diferente de pessoa para pessoa. Tenho um amigo do mercado financeiro que está fazendo fisioterapia mesmo depois de um mês de alta, pois perdeu grande parte da musculatura. Mais um caso de pessoa próxima, que está à frente de uma autarquia estadual em São Paulo: nesta semana, chegará a um período de 50 dias de internação. Ficou duas semanas entubado e sedado. Hoje, faz fisioterapia intensa pois perdeu todos seus movimentos – seus músculos não têm força alguma. O mesmo ocorre com um empresário da construção civil, internado há três meses. Mas há vários outros que se queixaram apenas de uma dor de cabeça infernal ou da perda do olfato e do paladar, sintomas bastante comentados por aí.
Portanto, dentro deste cenário, há um elemento importante a ser levado em consideração: a imprevisibilidade. Há pessoas que não se contaminam, outras são assintomáticas, existem aquelas que têm efeitos mínimos e uma minoria que sofre muito com os sintomas. Embora seja uma minoria do ponto de vista estatístico, estamos falando, em termos numéricos, de muita gente. Aqui é que reside o perigo – de perdermos entes queridos ou de viver o pesadelo de sobrecarregar o sistema de saúde.
Um dos efeitos nefastos da pandemia é disseminação da cultura do medo. Ontem mesmo, vi um vídeo no qual um palestrante diz que a sociedade está vivendo a era do pânico (mais adiante, na gravação, o sujeito diz que não deveríamos usar máscaras e, com isso, perde a credibilidade. Como se sabe, as máscaras eliminam mais que 90 % do risco de contaminação pelo coronavírus). De qualquer forma, tirando os exageros do autor deste vídeo, fica uma pergunta importante: como sairemos da covardia para a intrepidez?
Sem pessoas corajosas, não teremos evolução, geração de riquezas ou desbravamento de novos mercados. Mas não podemos confundir o combate ao medo com a irresponsabilidade total. Largar as máscaras, neste estágio em que nem começamos o processo de vacinação, é um ato leviano e imprudente. Não podemos ser covardes, é verdade. Mas a imprudência pode custar vidas e fazer os hospitais entrarem em colapso.
Precisamos deixar o pânico de lado. Com prudência e responsabilidade. É preciso que as pessoas voltem ao seu estado normal de ponderação, sem excessos para um lado ou para outro. Negacionistas ou sanitaristas fanáticos não irão liderar a maioria da sociedade para chegarmos ao final deste processo. Precisamos de um choque de bom senso e isso precisa ocorrer agora. Vamos aproveitar a chance de um novo começo de ano para resetar os extremos e procurarmos juntos o equilíbrio e o autocontrole.