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Por que essa celeuma em torno de Fernanda Montenegro na ABL?

A nomeação de Fernanda causou discussões nas redes sociais e em grupos de WhatsApp

Fernanda Montenegro (Rovena Rosa/Agência Brasil)
DR

Da Redação

Publicado em 9 de novembro de 2021 às 11h44.

Aluizio Falcão Filho

Desde a semana passada, a atriz Fernanda Montenegro é uma imortal. No dia 4, ela foi escolhida para ocupar a cadeira número 17 da Academia Brasileira de Letras, cujo patrono é Hipólito da Costa, um jornalista conhecido por ter editado (de Londres) aquele que é considerado o primeiro jornal a circular no país, o Correio Braziliense (sem relação alguma com o atual diário de Brasília a não ser a coincidência de nomes). Além disso, ele também pode ser considerado o primeiro representante da imprensa venal – recebeu, por debaixo dos panos, dinheiro da Coroa Portuguesa para maneirar nas críticas a Dom João VI, segundo o escritor Laurentino Gomes em “1808”.

A nomeação de Fernanda causou discussões nas redes sociais e em grupos de WhatsApp. No meio da celeuma, um meme em particular chama a atenção (vi em pelo menos uma dúzia de ocasiões entre sábado e domingo). “Dica de boa leitura para o final de semana: procure a obra literária de Fernanda Montenegro”, diz o quadrinho.

Bem, Fernanda tem dois livros publicados (um em parceria com a jornalista Marta Góes, com quem já trabalhei). Já li uma dessas obras e fiquei particularmente tocado pelo trecho em que ela conta certas passagens de sua família, com raízes portuguesas, e ressalta a dureza destes personagens. Ou seja, não dá para dizer que ela é uma imortal sem obras.

Sobram, então, duas polêmicas.

A primeira é a de que seus livros não têm relevância literária. Isso até pode ser verdade, mas a atriz em questão não é a única a cometer esse pecado em 124 anos de ABL. Há vários imortais durante esse período que não produziram um só livro que tenha sido um sucesso de vendas ou de crítica, a começar pelo patrono da cadeira de Fernanda.

Há dezenas de exemplos nesse sentido, mas vamos ficar em um caso em particular, ocorrido na cadeira de Machado de Assis, a de número 23. No início do século 20, foi ocupada por Afonso Pujol. Não liga o nome à pessoa? Talvez porque ele nunca tenha sido um escritor de expressão. Entre suas obras, estão os eletrizantes “Manual de Audiências” e “Processos Criminais”.

Na ABL, temos de tudo. Há cineastas, como Cacá Diegues (que sucedeu outro diretor de cinema, Nelson Pereira do Santos). Economistas, como Edmar Bacha (no lugar que foi de Alceu de Amoroso Lima). Políticos, como Fernando Henrique Cardoso e José Sarney (cujo “Marimbondos de Fogo” é um remédio clássico para os insones – basta ler meia página que a pestana estará garantida). Jornalistas, como Merval Pereira, Arnaldo Niskier e Zuenir Ventura. Poetas, como Geraldo Carneiro e Antonio Cícero (conhecido nacionalmente pelas letras que fez para sua irmã, a cantora Marina Lima, em sucessos como “Fullgás”, “Pra Começar” e “Virgem”).

Também temos entre os membros o maior best-seller da história brasileira: Paulo Coelho, longe de ser uma unanimidade entre os críticos literários. E escritores estimados pelo público e pela crítica, como Ignácio de Loyola Brandão, Antonio Torres e Lygia Fagundes Telles. Por fim, há imortais reconhecidos por outras atividades que não a literatura: o ex-ministro das Reações Exteriores Celso Lafer e o ex-secretário de Cultura Sérgio Paulo Rouanet (sim, o autor daquela lei que hoje causa tanta discussão).

Como se pode ver, a atriz Fernanda Montenegro não é exatamente uma exceção dentro do mundinho da Academia. Há inúmeros colegas que não podem ser classificados dentro da definição clássica de escritores – e isso sempre foi comum na ABL. De algumas décadas para cá, no entanto, ficou estabelecido que pessoas com grandes contribuição para a cultura nacional poderiam assumir cadeiras, desde que tivessem publicado pelo menos um livro. Pode-se dizer que a mãe de Fernanda Torres cumpre esses pré-requisitos.

Por que, então, a confusão?

Primeiro, porque estamos na era dos cancelamentos e das polêmicas. Tudo, absolutamente tudo, é debatido nas redes. Algo que nunca gerou discussões, como o uso de vacinas ou a nomeação de alguém que não é escritor para a ABL, é fruto de controvérsia e antagonismo.

Além disso, vivemos em uma época em que os críticos do governo, os artistas e atores/atrizes da TV Globo são bombardeados pelos seguidores do presidente Jair Bolsonaro. Fernanda Montenegro se encaixa nesses três perfis.

Em 1961, o jornalista Paulo Francis escreveu na revista Senhor (sob o pseudônimo de Franz Heilborn, seu verdadeiro nome) sobre a relação que parte da sociedade tem com a classe artística: “O artista penetra em áreas de experiência que a maioria de nós veda ao distinto público, embora, sem dúvida, visitemo-las consciente ou inconscientemente na nossa intimidade. Daí, a atitude de censura em relação ao artista é sempre ambígua, sempre errada no sentido cultural, ao mesmo tempo que joga com uma liberdade de ação que a sociedade lhe concedeu, ainda que contra a vontade, em outros setores da atividade”.

Trocando em miúdos: os conservadores criticam os artistas, mas acabam tolerando-os como um mal necessário. Nos últimos tempos, no entanto, essa tolerância diminuiu e a agressividade dos repreensores elevou-se. Há pouco espaço para a contemporização – e as críticas a Fernanda Montenegro mostram isso.

Uma das frases recorrentes na campanha de 2018 e nos primeiros meses de 2019, vinda do público mais conservador, era dirigida a quem questionava qualquer aspecto do presidente Jair Bolsonaro. Era alguma coisa do gênero “onde estava fulano quando o PT dilapidava o país?”. Pois eu pergunto aos críticos da nomeação de Fernanda Montenegro: onde estavam vocês quando o jornalista Roberto Marinho foi escolhido, em 1993, para a cadeira 39 da ABL, após lançar um único livro de memórias no ano anterior?

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Aluizio Falcão Filho

Desde a semana passada, a atriz Fernanda Montenegro é uma imortal. No dia 4, ela foi escolhida para ocupar a cadeira número 17 da Academia Brasileira de Letras, cujo patrono é Hipólito da Costa, um jornalista conhecido por ter editado (de Londres) aquele que é considerado o primeiro jornal a circular no país, o Correio Braziliense (sem relação alguma com o atual diário de Brasília a não ser a coincidência de nomes). Além disso, ele também pode ser considerado o primeiro representante da imprensa venal – recebeu, por debaixo dos panos, dinheiro da Coroa Portuguesa para maneirar nas críticas a Dom João VI, segundo o escritor Laurentino Gomes em “1808”.

A nomeação de Fernanda causou discussões nas redes sociais e em grupos de WhatsApp. No meio da celeuma, um meme em particular chama a atenção (vi em pelo menos uma dúzia de ocasiões entre sábado e domingo). “Dica de boa leitura para o final de semana: procure a obra literária de Fernanda Montenegro”, diz o quadrinho.

Bem, Fernanda tem dois livros publicados (um em parceria com a jornalista Marta Góes, com quem já trabalhei). Já li uma dessas obras e fiquei particularmente tocado pelo trecho em que ela conta certas passagens de sua família, com raízes portuguesas, e ressalta a dureza destes personagens. Ou seja, não dá para dizer que ela é uma imortal sem obras.

Sobram, então, duas polêmicas.

A primeira é a de que seus livros não têm relevância literária. Isso até pode ser verdade, mas a atriz em questão não é a única a cometer esse pecado em 124 anos de ABL. Há vários imortais durante esse período que não produziram um só livro que tenha sido um sucesso de vendas ou de crítica, a começar pelo patrono da cadeira de Fernanda.

Há dezenas de exemplos nesse sentido, mas vamos ficar em um caso em particular, ocorrido na cadeira de Machado de Assis, a de número 23. No início do século 20, foi ocupada por Afonso Pujol. Não liga o nome à pessoa? Talvez porque ele nunca tenha sido um escritor de expressão. Entre suas obras, estão os eletrizantes “Manual de Audiências” e “Processos Criminais”.

Na ABL, temos de tudo. Há cineastas, como Cacá Diegues (que sucedeu outro diretor de cinema, Nelson Pereira do Santos). Economistas, como Edmar Bacha (no lugar que foi de Alceu de Amoroso Lima). Políticos, como Fernando Henrique Cardoso e José Sarney (cujo “Marimbondos de Fogo” é um remédio clássico para os insones – basta ler meia página que a pestana estará garantida). Jornalistas, como Merval Pereira, Arnaldo Niskier e Zuenir Ventura. Poetas, como Geraldo Carneiro e Antonio Cícero (conhecido nacionalmente pelas letras que fez para sua irmã, a cantora Marina Lima, em sucessos como “Fullgás”, “Pra Começar” e “Virgem”).

Também temos entre os membros o maior best-seller da história brasileira: Paulo Coelho, longe de ser uma unanimidade entre os críticos literários. E escritores estimados pelo público e pela crítica, como Ignácio de Loyola Brandão, Antonio Torres e Lygia Fagundes Telles. Por fim, há imortais reconhecidos por outras atividades que não a literatura: o ex-ministro das Reações Exteriores Celso Lafer e o ex-secretário de Cultura Sérgio Paulo Rouanet (sim, o autor daquela lei que hoje causa tanta discussão).

Como se pode ver, a atriz Fernanda Montenegro não é exatamente uma exceção dentro do mundinho da Academia. Há inúmeros colegas que não podem ser classificados dentro da definição clássica de escritores – e isso sempre foi comum na ABL. De algumas décadas para cá, no entanto, ficou estabelecido que pessoas com grandes contribuição para a cultura nacional poderiam assumir cadeiras, desde que tivessem publicado pelo menos um livro. Pode-se dizer que a mãe de Fernanda Torres cumpre esses pré-requisitos.

Por que, então, a confusão?

Primeiro, porque estamos na era dos cancelamentos e das polêmicas. Tudo, absolutamente tudo, é debatido nas redes. Algo que nunca gerou discussões, como o uso de vacinas ou a nomeação de alguém que não é escritor para a ABL, é fruto de controvérsia e antagonismo.

Além disso, vivemos em uma época em que os críticos do governo, os artistas e atores/atrizes da TV Globo são bombardeados pelos seguidores do presidente Jair Bolsonaro. Fernanda Montenegro se encaixa nesses três perfis.

Em 1961, o jornalista Paulo Francis escreveu na revista Senhor (sob o pseudônimo de Franz Heilborn, seu verdadeiro nome) sobre a relação que parte da sociedade tem com a classe artística: “O artista penetra em áreas de experiência que a maioria de nós veda ao distinto público, embora, sem dúvida, visitemo-las consciente ou inconscientemente na nossa intimidade. Daí, a atitude de censura em relação ao artista é sempre ambígua, sempre errada no sentido cultural, ao mesmo tempo que joga com uma liberdade de ação que a sociedade lhe concedeu, ainda que contra a vontade, em outros setores da atividade”.

Trocando em miúdos: os conservadores criticam os artistas, mas acabam tolerando-os como um mal necessário. Nos últimos tempos, no entanto, essa tolerância diminuiu e a agressividade dos repreensores elevou-se. Há pouco espaço para a contemporização – e as críticas a Fernanda Montenegro mostram isso.

Uma das frases recorrentes na campanha de 2018 e nos primeiros meses de 2019, vinda do público mais conservador, era dirigida a quem questionava qualquer aspecto do presidente Jair Bolsonaro. Era alguma coisa do gênero “onde estava fulano quando o PT dilapidava o país?”. Pois eu pergunto aos críticos da nomeação de Fernanda Montenegro: onde estavam vocês quando o jornalista Roberto Marinho foi escolhido, em 1993, para a cadeira 39 da ABL, após lançar um único livro de memórias no ano anterior?

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