Os intelectuais e o poder, segundo Paulo Francis
Os representantes da elite intelectual geralmente prezam a racionalidade, coerência e ponderação – características nem sempre presentes entre os governantes
felipegiacomelli
Publicado em 21 de julho de 2020 às 07h52.
Última atualização em 21 de julho de 2020 às 07h52.
A relação entre os intelectuais e o poder sempre foi tormentosa. Os representantes da chamada elite intelectual de um país geralmente prezam a racionalidade, a coerência e a ponderação – características nem sempre presentes entre os governantes. Além disso, são indivíduos que promovem um constante questionamento de conceitos, possuem curiosidade abissal para entender as razões que engatilham os fatos e estão sempre em uma espécie de transe, que é a análise constante da realidade. Esses traços levam fatalmente à crítica, à indagação e ao desnudamento de intenções.
Entre esse grupo, há evidentemente os puxa-sacos, que se locupletam da proximidade com o poder e fazem vistas grossas a eventuais barbaridades. E também coabitam os partidários das ideologias de praxe. Mas, no universo intelectual, raramente existem extremistas (há alguns, é claro). Pode-se observar inúmeros intervalos ideológicos entre a direita e a esquerda. Os intelectuais vão preenchendo estes espaços, mas boa parte deles acaba se fixando à esquerda do centro.
Num artigo escrito em 1959 para a revista Senhor, o jornalista Paulo Francis disse o seguinte: “Já nos EUA, os intelectuais estão segregados do poder, como é publico e notório. São marginais. O situacionismo é anti-intelectual. Desconfia que as atividades do cérebro sejam subversivas, a menos que aplicadas às ciências necessárias ao desenvolvimento das indústrias ou ao que é tradicional e santificado em arte (N. da R.: curiosamente, quando deixou o Brasil, em 1971, foi morar justamente em Nova York, nos Estados Unidos)”.
Francis foi um dos primeiros jornalistas brasileiros a personificar opiniões de direita após o governo militar. Jornalistas e intelectuais, nos primeiros anos da redemocratização, ainda viviam sob o estigma de que concordar com teses capitalistas os transformariam necessariamente em apoiadores da ditadura. Um dos primeiros a romper com essas amarras, geralmente partia para ataques diretos a personagens emblemáticos da esquerda, como o petista Luiz Inácio Lula da Silva. Talvez seu alvo predileto, Lula era fustigado até por conta de suas características físicas (certa ocasião, ralhou com a “barriga de feijão” do oponente de Fernando Collor nas eleições de 1989). Paulo Francis morreu antes de ver Lula na presidência do país, os escândalos de corrupção do PT, as redes sociais e a ascensão de Jair Bolsonaro.
Hoje, nesse mundo tomado pelas redes sociais, Francis teria dificuldades para lidar com ativistas radicais de direita e de esquerda. Politicamente incorreto e provocador contumaz, seria perseguido até dizer chega. E teria de lidar com extremistas que não têm interesse intelectual algum ou capacidade de discussão. Mas poderia contribuir para um debate que cada vez mais está ligado a pessoas e não a ideias.
“A melhor propaganda anticomunista é deixar um comunista falar”, disse ele. Mas sua metralhadora giratória atacava também a direita. “O Brasil sempre foi a casa da Mãe Joana de elites sub-reptícias que fazem o que querem”, escreveu em uma coluna. Insolente, sempre tinha uma frase genial para entortar seus debatedores. Certa feita, ao retrucar um conceito marxista, sapecou essa pérola: “Marx escrevendo sobre dinheiro é como padre falando de sexo”.
Diversas vezes, Francis foi citado pelo escritor Olavo de Carvalho para defender determinados pontos de vista. Talvez Olavo se identifique com o fato de que o jornalista carioca foi esquerdista no passado e se rendeu, depois de alguns anos, à direita. Mas dificilmente Francis seria um irmão de armas de Olavo. Raramente descambava para o discurso chulo, como faz o escritor radicado na Virgínia, preferindo desmontar os opositores com frases ácidas e sarcásticas.
Seu texto sobre a marginalização dos intelectuais, apesar de escrito há 61 anos, permanece atual e chama a atenção para um mal dos tempos modernos: o desprezo pela cultura, pelas ideias e pela argumentação de alto nível. Nos dias de hoje, há uma obrigatoriedade de se escolher um canto e, de lá, torpedear os adversários. Um exemplo emblemático é visto num programa de debates de uma emissora a cabo. Um dos participantes introduziu na TV brasileira o que se pode chamar de debate de uma nota só: o governo está sempre certo e revogam-se todas as disposições em contrário (do ponto de vista meramente estatístico, no entanto, isso é impossível).
Fazer da coerência uma bandeira e martelar em apenas uma tecla, para Paulo Francis, era um atraso de vida. De fato, uma mente aberta e sintonizada com a modernidade precisa ser curiosa e aprender com os outros, abrindo espaço para ideias opostas às suas e, principalmente, tentar entender a lógica alheia. Neste processo, a contradição fatalmente surgirá, pois faz parte do território fértil dos debates. É como o próprio Francis costumava pregar. “Qualquer pessoa inteligente é contraditória”, dizia. “Apenas os idiotas não se contradizem.”
A relação entre os intelectuais e o poder sempre foi tormentosa. Os representantes da chamada elite intelectual de um país geralmente prezam a racionalidade, a coerência e a ponderação – características nem sempre presentes entre os governantes. Além disso, são indivíduos que promovem um constante questionamento de conceitos, possuem curiosidade abissal para entender as razões que engatilham os fatos e estão sempre em uma espécie de transe, que é a análise constante da realidade. Esses traços levam fatalmente à crítica, à indagação e ao desnudamento de intenções.
Entre esse grupo, há evidentemente os puxa-sacos, que se locupletam da proximidade com o poder e fazem vistas grossas a eventuais barbaridades. E também coabitam os partidários das ideologias de praxe. Mas, no universo intelectual, raramente existem extremistas (há alguns, é claro). Pode-se observar inúmeros intervalos ideológicos entre a direita e a esquerda. Os intelectuais vão preenchendo estes espaços, mas boa parte deles acaba se fixando à esquerda do centro.
Num artigo escrito em 1959 para a revista Senhor, o jornalista Paulo Francis disse o seguinte: “Já nos EUA, os intelectuais estão segregados do poder, como é publico e notório. São marginais. O situacionismo é anti-intelectual. Desconfia que as atividades do cérebro sejam subversivas, a menos que aplicadas às ciências necessárias ao desenvolvimento das indústrias ou ao que é tradicional e santificado em arte (N. da R.: curiosamente, quando deixou o Brasil, em 1971, foi morar justamente em Nova York, nos Estados Unidos)”.
Francis foi um dos primeiros jornalistas brasileiros a personificar opiniões de direita após o governo militar. Jornalistas e intelectuais, nos primeiros anos da redemocratização, ainda viviam sob o estigma de que concordar com teses capitalistas os transformariam necessariamente em apoiadores da ditadura. Um dos primeiros a romper com essas amarras, geralmente partia para ataques diretos a personagens emblemáticos da esquerda, como o petista Luiz Inácio Lula da Silva. Talvez seu alvo predileto, Lula era fustigado até por conta de suas características físicas (certa ocasião, ralhou com a “barriga de feijão” do oponente de Fernando Collor nas eleições de 1989). Paulo Francis morreu antes de ver Lula na presidência do país, os escândalos de corrupção do PT, as redes sociais e a ascensão de Jair Bolsonaro.
Hoje, nesse mundo tomado pelas redes sociais, Francis teria dificuldades para lidar com ativistas radicais de direita e de esquerda. Politicamente incorreto e provocador contumaz, seria perseguido até dizer chega. E teria de lidar com extremistas que não têm interesse intelectual algum ou capacidade de discussão. Mas poderia contribuir para um debate que cada vez mais está ligado a pessoas e não a ideias.
“A melhor propaganda anticomunista é deixar um comunista falar”, disse ele. Mas sua metralhadora giratória atacava também a direita. “O Brasil sempre foi a casa da Mãe Joana de elites sub-reptícias que fazem o que querem”, escreveu em uma coluna. Insolente, sempre tinha uma frase genial para entortar seus debatedores. Certa feita, ao retrucar um conceito marxista, sapecou essa pérola: “Marx escrevendo sobre dinheiro é como padre falando de sexo”.
Diversas vezes, Francis foi citado pelo escritor Olavo de Carvalho para defender determinados pontos de vista. Talvez Olavo se identifique com o fato de que o jornalista carioca foi esquerdista no passado e se rendeu, depois de alguns anos, à direita. Mas dificilmente Francis seria um irmão de armas de Olavo. Raramente descambava para o discurso chulo, como faz o escritor radicado na Virgínia, preferindo desmontar os opositores com frases ácidas e sarcásticas.
Seu texto sobre a marginalização dos intelectuais, apesar de escrito há 61 anos, permanece atual e chama a atenção para um mal dos tempos modernos: o desprezo pela cultura, pelas ideias e pela argumentação de alto nível. Nos dias de hoje, há uma obrigatoriedade de se escolher um canto e, de lá, torpedear os adversários. Um exemplo emblemático é visto num programa de debates de uma emissora a cabo. Um dos participantes introduziu na TV brasileira o que se pode chamar de debate de uma nota só: o governo está sempre certo e revogam-se todas as disposições em contrário (do ponto de vista meramente estatístico, no entanto, isso é impossível).
Fazer da coerência uma bandeira e martelar em apenas uma tecla, para Paulo Francis, era um atraso de vida. De fato, uma mente aberta e sintonizada com a modernidade precisa ser curiosa e aprender com os outros, abrindo espaço para ideias opostas às suas e, principalmente, tentar entender a lógica alheia. Neste processo, a contradição fatalmente surgirá, pois faz parte do território fértil dos debates. É como o próprio Francis costumava pregar. “Qualquer pessoa inteligente é contraditória”, dizia. “Apenas os idiotas não se contradizem.”