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O STF enterra o direito ao esquecimento: o passado é eterno

Embora facínoras precisem ser relembrados para prevenir tragédias futuras, os holofotes sobre o passado acabam respingando nos familiares que nada têm a ver com esses criminosos

Fachada do edifício sede do Supremo Tribunal Federal - STF (Marcello Casal Jr/Agência Brasil)
BG

Bibiana Guaraldi

Publicado em 12 de fevereiro de 2021 às 09h02.

Última atualização em 12 de fevereiro de 2021 às 09h15.

Em outubro do ano passado, escrevi um texto sobre o chamado direito ao esquecimento. O motivo foi a pauta do Supremo Tribunal Federal sobre causa envolvendo o assassinato de uma jovem em 1958. O processo, no qual a família da vítima pede que se apague o evento da memória e dos registros jornalísticos, voltou a ser votado nessa semana. Ontem, o STF decidiu: por nove votos a um, não existe tal direito na legislação brasileira e, portanto, fatos ocorridos no passado não podem ser fadados ao esquecimento.

Antes de entrar nessa discussão, é importante ressaltar que há dois tipos de interessados no direito ao esquecimento.

O primeiro reúne o lado das vítimas – é o caso do processo julgado hoje pelo Supremo. Em 2004, o programa Linha Direta exibiu um episódio dedicado ao crime de 1958 e os familiares da jovem assassinada pediram à Justiça que o caso não fosse mais relembrado pelos meios de comunicação. Entende-se o lado da família. Ficar revivendo uma tragédia indefinidamente é algo torturante e cruel.

Por outro lado, há outro tipo de interessado na ausência de lembranças: os algozes e suas respectivas famílias. Tome-se como exemplo o assassino de Ângela Diniz, Doca Street. Durante muitos anos, ele pediu que o esquecessem. Mas seu crime sempre voltava a ser discutido. No ano passado, ele resolveu sair do ostracismo forçado e escreveu um livro sobre sua versão do crime. Morreu três meses após o lançamento da obra.

Street foi protagonista de um dos casos mais horrendos de assassinato passional de mulheres. Enlouquecido de ciúme, matou Diniz após uma discussão, que encerrou com a seguinte frase: “Se você não vai ser minha, não será de ninguém”. Disparou quatro tiros e depositou a arma ao lado do corpo da namorada. Seu advogado conseguiu livrá-lo com uma pena branda sob o repugnante argumento de “legítima defesa da honra”.

Monstros como Street também são lembrados como frequência. Um deles é o cantor Lindomar Castilho, que matou sua ex-mulher com cinco balas pelas costas. Aliás, balear mulheres nessa situação parece ser uma constante entre covardes homicidas. O jornalista Antonio Marcos Pimenta Neves também matou sua ex-namorada também com um tiro por trás. Esses dois, seguramente, se inspiraram na tese estúpida de “legítima defesa da honra” e escolheram tirar uma vida porque essas mulheres não poderiam se relacionar com ninguém além deles.

Embora facínoras precisem ser constantemente relembrados para prevenirmos tragédias futuras, os holofotes sobre o passado desprezível de cada um acaba respingando nos familiares que nada têm a ver com esses criminosos. Tome-se como exemplo, June Oswald, filha de Lee Harvey Oswald (foto).

Oswald é conhecido no mundo inteiro, pois ele foi o homem acusado de matar o presidente John Fitzgerald Kennedy (naquele mesmo dia, assassinou a sangue frio um policial que lhe fez algumas perguntas e se escondeu em um cinema, onde entrou sem pagar) em 22 de novembro de 1963. Ele foi morto dois dias depois, tornando o caso mais nebuloso. Quando morreu, Oswald tinha duas filhas pequenas, que cresceram sob o estigma de carregar uma das alcunhas mais desfavoráveis de todos os tempos.

Em 1995, a New York Times Magazine publicou o perfil de uma dessas filhas, June. Ela, que deu a entrevista sob a condição de que seu sobrenome de casada não fosse revelado na reportagem, disse que desde a infância adotara o último nome de seu padrasto, Porter, para evitar o assédio. Quando saía da adolescência, um colega de trabalho lhe disse que ela era bastante parecida com “uma jovem Marina Oswald” (sua mãe). Imediatamente, no entanto, o rapaz pediu desculpas e disse que não “tinha a intenção de insultá-la” com aquele comentário.

Como se vê, uma tragédia traz sofrimento dos dois lados da trama.

Durante a votação, vários juízes do STF reforçaram um ponto, o de que há mecanismos legais para punir excessos que surgem da exposição de um fato nefasto do passado. Mas, no caso dos carrascos, perpetradores e sanguinários, não há conversa. “Os autores de crimes não teriam direito ao esquecimento”, afirmou o presidente do Supremo, Luiz Fux. A esse argumento é preciso somar outro: se não pudermos lembrar os casos malignos da história, corremos o risco de ser lenientes com certas situações que podem repetir erros pretéritos. Em nome das vítimas do passado, não podemos deixar que isso ocorra.

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Em outubro do ano passado, escrevi um texto sobre o chamado direito ao esquecimento. O motivo foi a pauta do Supremo Tribunal Federal sobre causa envolvendo o assassinato de uma jovem em 1958. O processo, no qual a família da vítima pede que se apague o evento da memória e dos registros jornalísticos, voltou a ser votado nessa semana. Ontem, o STF decidiu: por nove votos a um, não existe tal direito na legislação brasileira e, portanto, fatos ocorridos no passado não podem ser fadados ao esquecimento.

Antes de entrar nessa discussão, é importante ressaltar que há dois tipos de interessados no direito ao esquecimento.

O primeiro reúne o lado das vítimas – é o caso do processo julgado hoje pelo Supremo. Em 2004, o programa Linha Direta exibiu um episódio dedicado ao crime de 1958 e os familiares da jovem assassinada pediram à Justiça que o caso não fosse mais relembrado pelos meios de comunicação. Entende-se o lado da família. Ficar revivendo uma tragédia indefinidamente é algo torturante e cruel.

Por outro lado, há outro tipo de interessado na ausência de lembranças: os algozes e suas respectivas famílias. Tome-se como exemplo o assassino de Ângela Diniz, Doca Street. Durante muitos anos, ele pediu que o esquecessem. Mas seu crime sempre voltava a ser discutido. No ano passado, ele resolveu sair do ostracismo forçado e escreveu um livro sobre sua versão do crime. Morreu três meses após o lançamento da obra.

Street foi protagonista de um dos casos mais horrendos de assassinato passional de mulheres. Enlouquecido de ciúme, matou Diniz após uma discussão, que encerrou com a seguinte frase: “Se você não vai ser minha, não será de ninguém”. Disparou quatro tiros e depositou a arma ao lado do corpo da namorada. Seu advogado conseguiu livrá-lo com uma pena branda sob o repugnante argumento de “legítima defesa da honra”.

Monstros como Street também são lembrados como frequência. Um deles é o cantor Lindomar Castilho, que matou sua ex-mulher com cinco balas pelas costas. Aliás, balear mulheres nessa situação parece ser uma constante entre covardes homicidas. O jornalista Antonio Marcos Pimenta Neves também matou sua ex-namorada também com um tiro por trás. Esses dois, seguramente, se inspiraram na tese estúpida de “legítima defesa da honra” e escolheram tirar uma vida porque essas mulheres não poderiam se relacionar com ninguém além deles.

Embora facínoras precisem ser constantemente relembrados para prevenirmos tragédias futuras, os holofotes sobre o passado desprezível de cada um acaba respingando nos familiares que nada têm a ver com esses criminosos. Tome-se como exemplo, June Oswald, filha de Lee Harvey Oswald (foto).

Oswald é conhecido no mundo inteiro, pois ele foi o homem acusado de matar o presidente John Fitzgerald Kennedy (naquele mesmo dia, assassinou a sangue frio um policial que lhe fez algumas perguntas e se escondeu em um cinema, onde entrou sem pagar) em 22 de novembro de 1963. Ele foi morto dois dias depois, tornando o caso mais nebuloso. Quando morreu, Oswald tinha duas filhas pequenas, que cresceram sob o estigma de carregar uma das alcunhas mais desfavoráveis de todos os tempos.

Em 1995, a New York Times Magazine publicou o perfil de uma dessas filhas, June. Ela, que deu a entrevista sob a condição de que seu sobrenome de casada não fosse revelado na reportagem, disse que desde a infância adotara o último nome de seu padrasto, Porter, para evitar o assédio. Quando saía da adolescência, um colega de trabalho lhe disse que ela era bastante parecida com “uma jovem Marina Oswald” (sua mãe). Imediatamente, no entanto, o rapaz pediu desculpas e disse que não “tinha a intenção de insultá-la” com aquele comentário.

Como se vê, uma tragédia traz sofrimento dos dois lados da trama.

Durante a votação, vários juízes do STF reforçaram um ponto, o de que há mecanismos legais para punir excessos que surgem da exposição de um fato nefasto do passado. Mas, no caso dos carrascos, perpetradores e sanguinários, não há conversa. “Os autores de crimes não teriam direito ao esquecimento”, afirmou o presidente do Supremo, Luiz Fux. A esse argumento é preciso somar outro: se não pudermos lembrar os casos malignos da história, corremos o risco de ser lenientes com certas situações que podem repetir erros pretéritos. Em nome das vítimas do passado, não podemos deixar que isso ocorra.

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