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O PT acusa a Folha de fraude; deu a louca no mundo?

Notas, artigos e reportagens podem ferir muito mais do que uma bala de revólver. Mas a percepção de letalidade varia com a orientação política do leitor

Gleisi Hoffmann, do PT (Patricia Monteiro/Bloomberg)
Gleisi Hoffmann, do PT (Patricia Monteiro/Bloomberg)
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Money Report – Aluizio Falcão Filho

Publicado em 24 de março de 2021 às, 07h43.

Sim, eu sei. Conceitos de esquerda e direita estão ultrapassados. Mas vamos utilizá-los aqui para discutirmos um pouco o papel da imprensa neste ano de 2021, quando tudo – absolutamente tudo – pode ser questionado. Nos últimos anos, a credibilidade dos veículos de comunicação caiu. A principal causa disso seria uma eventual manipulação do conteúdo, com o objetivo de se favorecer uma determinada corrente política.

Na esquerda, durante o processo de impeachment de Dilma Rousseff, o Partido dos Trabalhadores e outras agremiações de esquerda começaram a chamar os veículos que cobriam aquele processo de “mídia golpista”, afirmando taxativamente que determinados jornais, revistas, emissoras de TV e portais estavam empenhados em derrubar a presidente.

Certo tempo depois, na campanha de 2018, apoiadores do então candidato Jair Bolsonaro cunharam o termo “Globolixo” e afirmaram que a imprensa estava vendida ao PT, pois recebeu toneladas de dinheiro em verbas oficiais para apoiar os governos petistas que duraram de 2003 a 2016.

Essas duas situações, absolutamente contraditórias, convivem até hoje. O governo e seus apoiadores reclamam que a imprensa é esquerdista e que boa parte do noticiário é distorcido para gerar críticas e indispor os eleitores contra o Planalto. Mas pergunte a qualquer militante petista o que ele acha da Globo. A provável resposta será a de que a emissora da família Marinho é golpista ou reacionária.

Ontem, curiosamente, surgiu mais um elemento nessa discussão.

Na segunda-feira, o Datafolha publicou uma pesquisa na qual 57 % dos entrevistados consideram justa a condenação de Lula por corrupção e lavagem de dinheiro. Isso, em tese, significa que a maioria dos eleitores teria uma rejeição quase que irrecuperável em relação a Lula.

A deputada Gleisi Hoffmann (foto), presidente do PT, reagiu através do Twitter: “Folha e DataFolha fraudaram pesquisa para influenciar decisões do STF sobre a suspeição de Moro e anulação das sentenças contra Lula.  Qual a diferença entre o jornal do sistema financeiro e o general golpista?”.

Para os petistas, a fraude está na forma através da qual a pergunta do Datafolha foi formulada: “Em 2017, o então juiz Sergio Moro condenou Lula à prisão pelos crimes de corrupção e lavagem de dinheiro no caso do tríplex de Guarujá. Na sua opinião, a condenação de Lula na época foi justa ou injusta?”. Para eles, a questão foi redigida de uma forma a induzir o entrevistado a responder positivamente, pois ele poderia entender que a questão seria sobre o que pensava na época e não atualmente. Dessa forma, sempre de acordo com o PT, a marca de 57 % que condenam Lula foi inflada injustamente.

Trata-se de um típico caso de dupla interpretação. O PT acredita que a expressão “na época” pode levar o entrevistado a entender uma coisa e responder outra, que contraria suas opiniões atuais. Muitos daqueles que leram a pergunta, porém, não enxergam essa sutileza e acham o contrário – ou seja, que a pergunta não induz a erro.

Mas o piti de Gleisi em si é mais importante do que o teor da bronca dada pela rede social.

Temos aqui a líder de um partido acusando um veículo jornalístico de fraude. Isso não se vê todos os dias e coloca o PT em pé de guerra contra um jornal que, bem, é chamado de petista a torto e a direito. Parece que deu a louca no mundo. Mas, não.

Embora a Folha de S. Paulo dê mostras de que é um jornal desde os anos 1980 mais alinhado à esquerda, trata-se de uma publicação que bateu, de tempos em tempos, no PT. Foi a Folha, por exemplo, que publicou a entrevista de Roberto Jefferson na qual se cunhou o termo “mensalão”. Se a publicação fosse uma guardiã incondicional do PT teria publicado isso? É evidente que não.

A bronca de Glesi traz reminiscências de uma frase de Vladimir Lênin, oráculo master das correntes mais radicais do PT. “Por que a liberdade de expressão e liberdade de imprensa deveriam ser permitidas? Por que um governo que faz aquilo que considera certo deveria permitir que seja criticado? Não deveria permitir à oposição usar armas letais. E ideias são muito mais fatais que armas de fogo. Por que, então, qualquer pessoa poderia comprar um jornal que dissemina opiniões perniciosas calculadas para envergonhar o governo?”, disse ele.

Notas, artigos e reportagens podem ferir muito mais do que uma bala de revólver. Mas a percepção de letalidade varia de acordo com a orientação política do leitor. Quando diretor de redação da revista Época, publiquei um artigo sobre uma determinada disputa entre o então presidente Luiz Inácio Lula da Silva e o Congresso. Na segunda-feira, recebi pela manhã a ligação de um assessor palaciano. Ele reclamava que a reportagem favorecia os tucanos. À tarde, um senador do PSDB me telefonou, chateado porque achava que a reportagem livrava a cara do PT. Vejam bem: não estamos falando de artigos diferentes. Era o mesmo texto.

Publisher do New York Times entre 1935 e 1960, Arthur Hays Sulszberger (bisavô do atual Manda-Chuva da redação, A. G. Sulszberger), resumiu bem essa questão. “Nós contamos ao público o lado para qual o gato está pulando”, dizia. “Mas é o público que deve tomar conta do gato”. Neste caso, se você estiver à direita do felino, achará que ele está pulando em uma determinada direção; mas, se estiver à esquerda, sua percepção será a de que o bichano está saltando no sentido oposto.

É por isso que um único artigo, mesmo escrito com a maior imparcialidade possível, provoca reações completamente diferentes na direita e na esquerda. E você? De qual lado do gato está?