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O mundo de hoje, imaginado por quem vivia em 1965

Será que não estamos fazendo a mesma coisa com nossas carreiras e empresas, imaginando atuar em mercados que não existirão daqui a um tempo?

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Money Report – Aluizio Falcão Filho

Publicado em 4 de julho de 2020 às, 10h53.

Última atualização em 4 de julho de 2020 às, 10h54.

O escritor Laurentino Gomes, em seu livro “Escravidão”, discute na obra o princípio do anacronismo. Ele afirma que este fenômeno “consiste num erro de cronologia ao atribuir a uma época ou a um personagem ideias e sentimentos que são de outra conjuntura, ou em representar, nas obras de arte, costumes e objetos de um período de tempo ao qual não pertencem. Ou, ainda, atitude ou fato que não está de acordo com a sua época”. Geralmente fazemos isso ao olhar para o passado. Transformamos nossa visão do presente em algo atemporal e analisamos a história conforme a soberba de nossos conceitos, o que muitas vezes pode nos levar a formidáveis erros de avaliação.

Ao manusear uma revista de 1965, no entanto, percebi que podemos cometer o mesmo engano ao nos transportar para o futuro. A futurologia fatalmente nos leva a ignorar possíveis quebras de paradigmas de algo que é corriqueiro no presente e achar que haverá a presença do mesmo objeto nas épocas que virão. Um exemplo clássico disso é o filme “De Volta Para o Futuro – Parte Dois”. Produzida em 1989 e ambientada parcialmente em 2015, a película mostra, em um determinado momento, o personagem Marty McFly sendo demitido por videoconferência.

A conversa através de uma tela é algo muito comum desde o final dos anos 1990. Mas a cena contém dois elementos totalmente anacrônicos. O primeiro: o chefe de Marty é um japonês. Nos anos 1980, com a ascensão econômica do Japão, acreditava-se que o futuro seria dominado pelas empresas nipônicas, o que acabou não correndo com o passar do tempo. O segundo é a demissão em si do personagem, que é replicada pela impressão em três aparelhos de fax – algo que foi banido de nossas vidas desde o início dos anos 2000.

Voltando à revista de 1965. Trata-se do número zero da revista Realidade, que seria um dos maiores sucessos editoriais do mercado brasileiro, chegando a uma tiragem em torno de meio milhão de exemplares. Nesta edição experimental, há uma reportagem sobre o que aconteceria no início do século 21 – exatamente a época em que vivemos. Antes de mais nada, existe no texto um flagrante otimismo em relação à evolução tecnológica. Carros autônomos, algo que estamos começando a explorar, já seriam corriqueiros desde a virada do século -- e o espaço teria sido totalmente conquistado pela raça humana.

O artigo mostra uma série de invenções que iriam revolucionar a vida da sociedade. Aqui vem o primeiro anacronismo. Não foi possível se prever o surgimento do smartphone, uma invenção do final da década passada, mudou todo o jogo dos gadgets e enterrou duas sólidas indústrias, a fonográfica e a fotográfica. E trouxe para si uma série de tarefas e atributos que antes eram delegados a outro tipo de aparelho. A matéria, assim, mostra que nos tempos atuais teríamos óculos que tirariam fotografias, aparelhos de telefone fixo com câmaras, relógios que passariam a programação da TV e anéis que gravariam tudo o que foi dito em reuniões de trabalho.

Há, de fato, todas essas funcionalidades, só que todas reunidas num só celular.

Outra invenção que aos olhos dos cidadãos dos anos 1960 seria algo corriqueiro em 2020 seria os aparelhos de tradução automática da voz. Por enquanto, temos um sistema bem amarrado para verter textos de uma língua para outra. Há alguns tradutores que reconhecem a voz de seus usuários, mas ainda não estão no mesmo nível dos softwares que entendem uma outra língua através da escrita (essa funcionalidade logo será incorporada os celulares e deve ajudar muito turistas ao redor do mundo). Os smartphones, que já são algo importantíssimo nos dias de hoje, vão ser levados ao próximo nível quando surgirem a as redes 5G e a internet das coisas. Portanto, aguarde um pouco. As grandes mudanças ainda estão por vir.

Uma das previsões publicadas na revista se sobressai mais que as demais – trata-se do que os futurólogos chamaram de “cheque eletrônico”.
Os usuários teriam uma espécie de carteira na qual escreveriam seus cheques. Estas folhinhas de papel, então, estariam conectadas a uma central que informaria o saldo, faria transferências e registraria todas as transações em...microfilme! O texto, inclusive, era bem otimista em termos de avanço científico na indústria de eletrodomésticos: “Para pagar o conserto de seu fogão atômico você pode encher o cheque de maneira tradicional”.

Outra manifestação de otimismo em relação ao avanço tecnológico diz respeito a um tipo de roupa que contaria com um termostato, esquentando e esfriando de acordo com as necessidades climáticas. Hoje, há aqui e ali algumas experiências do gênero – mas não é algo que se encontre na loja da esquina ou que seja algo corriqueiro em nossas vidas.

Essa reportagem mostra o nosso raciocínio quando começamos qualquer processo de planejamento: sempre pensamos que o futuro é uma continuação linear do presente. Ocorre que temos sempre quebras de paradigma que acabam moldando o futuro. A internet e os smartphones foram a semente de ruptura que deram o formato de nossa vida atual. Muito provavelmente, haverá novas mudanças nos próximos anos que também tornarão anacrônicas nossas previsões de hoje sobre como será a vida daqui a 50 anos.

Será que não estamos fazendo a mesma coisa com nossas carreiras e empresas, imaginando atuar em mercados que não existirão daqui a um tempo? Depois da pandemia – algo que ninguém colocou em seus exercícios de planejamento –, esperar o imponderável se tornou uma regra imprescindível para a gestão corporativa. Que essa reportagem de Realidade (combinada com a duro cenário provocado pelo coronavírus) sirva de alerta para mostrar que certas mudanças precisam ser consideradas quando imaginamos o futuro – e que precisamos analisar com lupa as novidades de hoje que podem gerar transformações fundamentais nos anos que viveremos à frente.