Exame.com
Continua após a publicidade

O fim da síndrome de Tony Manero

Tony Manero é um sujeito que vive de verdade apenas nos finais de semana e vai tocando sem grandes expectativas sua vida profissional de segunda a sexta

Tony Manero: personagem de John Travolta em filme é ficção, mas corresponde a muita gente na vida real (Paramount Pictures/Victoria & Albert Museum via Bloomberg/Bloomberg)
Tony Manero: personagem de John Travolta em filme é ficção, mas corresponde a muita gente na vida real (Paramount Pictures/Victoria & Albert Museum via Bloomberg/Bloomberg)
M
Money Report – Aluizio Falcão Filho

Publicado em 10 de setembro de 2020 às, 09h23.

Última atualização em 10 de setembro de 2020 às, 09h36.

Se você não está ligando o nome à pessoa, Tony Manero é o nome do personagem de John Travolta no filme “Os Embalos de Sábado à Noite”. Durante a semana, ele é vendedor numa loja de tintas, ganhando um salário mixuruca e sem nenhum interesse naquilo que faz. Mas, nos fins de semana, vai com seus amigos à discoteca do bairro e se transforma no rei das pistas de danças. Tony Manero é um sujeito que vive de verdade apenas nos finais de semana e vai tocando sem grandes expectativas sua vida profissional de segunda a sexta.

Quantas pessoas iguais a Tony Manero você conhece? Antes da pandemia, tinha em meu radar várias figuras que encaravam o trabalho como um mal necessário e só mostravam sinais vitais nas horas de folga. Como se o lazer fosse o momento mais importante de suas vidas, esses indivíduos ficavam em estado depressivo nas noites de domingo.

Outro sintoma visível dessa falta de interesse no trabalho podia ser visto também na volta do almoço. Nos locais de grande aglomeração de escritórios em São Paulo, como Vila Olímpia, Avenida Paulista e Berrini, era muito comum, no período pré-pandemia, ver pessoas se arrastando quando retornavam do horário reservado às refeições, como se quisessem retardar ao máximo o momento em que teriam de trabalhar.

Neste momento em que o Home Office tomou conta de boa parte dos executivos (nesta semana, por exemplo, fiz várias videoconferências. Nenhum participante estava nos escritórios), tivemos uma situação inusitada: o lazer foi reduzido drasticamente e deu lugar a um certo tédio.

Mesmo com a volta de algumas atividades ao normal, há limites. Bares, por exemplo, fecham às 22:00, frustrando os boêmios. Qualquer atividade que represente uma aglomeração de pessoas é monitorada. Paradoxalmente, o trabalho – mesmo com todas as distrações existentes nas residências – passou a ser o foco de quem não vai ao escritório.

No caso dos que trabalham apenas por causa do contracheque, o cotidiano foi mudado de forma radical. Goste-se disso ou não, a cobrança de tarefas via computador ou celular passou a extrapolar o chamado horário comercial.

Portanto, aqueles que tinham aversão ao trabalho (por falta de afinidade ou preguiça) tiveram diante de si um desafio: repensar sua relação com a atividade profissional. Neste pormenor, um amigo meu, Marco Stefanini, me brindou certa ocasião com uma frase sábia. Numa conversa despretensiosa, perguntei a ele qual era sua formação – pela atuação na área de tecnologia (ele é fundador de um dos maiores grupos do setor), sempre achei que ele fosse engenheiro.

Marco me deu um olhar maroto. “Na minha vida, aprendi a gostar do que faço em vez de fazer o que gosto”, disse ele. Sua formação universitária? Geologia. O que isso tem a ver com tecnologia? Aparentemente, nada. Mas seu ímpeto empreendedor, aliado a uma capacidade de trabalho infinita, o fez tomar gosto pela atividade.

Aprender a gostar daquilo que faz em vez de fazer aquilo que gosta – essa foi uma das lições mais incríveis que aprendi nos últimos tempos. E pode ser aplicada diretamente a quem sofre da síndrome de Tony Manero, aqueles que só vivem para valer fora do trabalho.

Quando se é apaixonado pelo que se faz, tudo flui mais rápido e de maneira saborosa. Mas, às vezes, temos dificuldade em gostar de um determinado aspecto (ou vários de nossas tarefas). Lembro de quando fui estagiário da finada Gazeta Mercantil. Havia duas coisas que odiava fazer. Uma era fazer uma seção chamada minibalanços. O centro de documentação do jornal mandava o resumo de balanços de empresas médias e tinha que copiá-los numa lauda. Era um trabalho mecânico e que requeria um cuidado especial, pois digitar um três em vez de um nove poderia trazer sérios problemas para muita gente – a começar pela minha pessoa.

Outra tarefa que eu detestava era cobrir as reuniões dos analistas de mercado, que sabatinavam as empresas abertas. A associação que reunia esses profissionais se chamava Abamec (hoje rebatizada por Apimec) e fazia esses encontros ao final das tardes, quando os executivos eram questionados pelos analistas, num ambiente monótono e modorrento.

Determinado dia, conversando com uma colega mais velha, me queixei das duas tarefas. E ela, como o amigo Marco Stefanini, me ofereceu um pouco de sabedoria. Em relação aos minibalanços, disse que era melhor eu aceitar a trolha e esperar a entrada de outro estagiário – pois aquele tipo de tarefa era reservado a quem estava no último lugar da cadeira alimentar. No caso, eu mesmo.

Sobre as reuniões da Abamec, ela me disse para aproveitar esses encontros para conhecer os mercados nos quais essas companhias atuavam e colocar tudo o que ouvia dentro de um contexto macroeconômico.

Esses conselhos me deram um novo ânimo e paciência. Depois de alguns meses, me formei e fui promovido a repórter. Veio um estagiário novo e, com alívio, passei os minibalanços para ele. E comecei a me interessar pelas reuniões da Abamec de outra maneira, perguntando mais sobre os concorrentes e detalhes específicos de cada mercado. Com o tempo, alguns analistas começaram a me explicar algumas minúcias dos balanços das companhias e consegui melhorar significativamente minhas matérias.

Por causa destes artigos, por sinal, chamei a atenção de alguns editores do mercado e passei a receber propostas de trabalho. Não aceitei a primeira ou a segunda, pois percebi o meu potencial e tracei metas. Instintivamente, fiz aquilo que li, décadas mais tarde, em um livro de Peter Drucker: “A não ser que exista comprometimento, há apenas promessas e esperanças, mas nenhum plano”. Só se consegue isso quando os olhos brilham com as pequenas conquistas no trabalho diário. Ou como diria o Marco Stefanini, “quando se aprende a gostar do que se faz, em vez de fazer o que se gosta”.