O direito ao esquecimento e o caso Ângela Diniz
Ao direito ao esquecimento soma-se outro tema, que também está em voga – o assassinato de Ângela Diniz, ocorrido em 1976
Publicado em 16 de outubro de 2020 às, 10h52.
Dois fatos ocorridos há muito tempo se tornaram recentemente tema de conversas nas redes sociais. Curiosamente, são assuntos que não se cruzam nessas rodas virtuais de bate-papo. Mas são conteúdos que têm tudo a ver entre si e deveriam ser debatidos em conjunto.
Um deles é o chamado direito ao esquecimento. Trata-se de uma tese que surgiu no final do século 19, nos Estados Unidos, a partir de um livro chamado “The Right of Privacy”, de Louis Brandeis e Samuel Warren, publicado em 1890. A tese se espalhou no mundo e chegou ao mundo jurídico brasileiro em 2013. Esse conceito versa sobre o direito que as pessoas têm de não permitir que um fato de suas vidas, mesmo que verdadeiro, seja explorado pela imprensa.
Trata-se de algo que, de tempos em tempos, volta à baila e, novamente, passou a ser debatido. Alguns dias atrás, o Supremo Tribunal Federal colocou em sua pauta uma causa envolvendo um episódio da série Linha Direta, exibida em 2004 pela Rede Globo. Esse acontecimento, a tragédia envolvendo uma jovem em 1958, é alvo do pedido da família da vítima, que quer apagar esse infortúnio da memória e dos registros jornalísticos. No final das contas, o tópico deixou de ser julgado pelo Supremo, mas deverá voltar à pauta em breve.
Ao direito ao esquecimento soma-se outro tema, que também está em voga – o assassinato de Ângela Diniz, ocorrido em 1976. Ângela era uma socialite mineira cuja vida no Jet Set foi minuciosamente descrita pelos colunistas sociais de seu tempo. Separada do primeiro marido, acabou se envolvendo com o empresário e playboy Raul Fernando Street, mais conhecido pelo apelido de “Doca”.
Mas ter um relacionamento com a chamada Pantera de Minas não era café pequeno. Bonita e desejada, Ângela era uma mulher independente para os padrões de comportamento da época e deixou Doca louco de ciúmes. Tão enciumado que a assassinou. Foi absolvido num julgamento polêmico, no qual a defesa ganhou a inocência com base num argumento totalmente esdrúxulo: o de que o assassino tinha tirado a vida da namorada em “legítima defesa da honra”.
A morte da socialite mineira regressou às pautas jornalísticas por conta de dois episódios. O primeiro foi o lançamento do livro de Doca, chamado “Mea Culpa”, em agosto, no qual rompe justamente o que havia pregado nos últimos 44 anos – o direito ao esquecimento. Talvez deste fato tenha vindo a ideia de Branca Vianna, fundadora da Rádio Novelo, uma produtora de podcasts, de contar, em oito episódios, a saga de Ângela Diniz.
O jornalista Walcyr Carrasco é hoje nacionalmente conhecido por ser autor de novelas. São dele, por exemplo, grandes sucessos da TV como Xica da Silva, Alma Gêmea e A Dona do Pedaço. Mas lembro do Walcyr que se sentava a poucos metros da minha mesa na redação de Exame, quando ele era um dos editores da revista VIP.
Nesta época, ele, seguindo seu instinto de repórter, resolveu explorar o caso Ângela Diniz. Descobriu que Doca Street trabalhava em um escritório de investimentos em São Paulo (se não me engano, na região da Avenida 9 de Julho) e marcou uma reunião, sem dizer que era jornalista.
Doca o recebeu com muita educação e, antes que Walcyr abrisse a boca, atendeu a um telefonema, pedindo mil desculpas. Isso apenas tornou o desconforto do repórter maior. A ligação terminou e Walcyr começou a se apresentar, pedindo uma entrevista. A expressão de Doca, foi se transformando da mais profunda delicadeza para uma fúria sombria. O hoje autor de novelas foi expulso do escritório embaixo de gritos. Mas, mesmo sem entrevista, produziu uma das melhores reportagens já feitas no Brasil sobre o tema.
Doca Street, durante anos, pediu que o esquecessem. E resolveu escrever um livro sobre seu crime e promovê-lo, num momento em que vivemos um recrudescimento contra comportamentos misóginos e, especialmente, uma condenação crescente em direção a acontecimentos hediondos, como o feminicídio.
Não importa as razões que impelem, hoje, o assassino a sair da toca. O ato repugnante de Street ganhou a cumplicidade de um júri incompetente, cruel e palerma, e se transformou em uma mancha indelével na história jurídica do país. Trata-se de alguém que sempre será lembrado por um gesto vil, desprezível e covarde.
Depois de uma briga, disse à namorada: “Se você não vai ser minha, não será de ninguém”. Em seguida, disparou quatro tiros e depositou a arma ao lado do corpo da vítima. Casos como esse ocorrem diariamente no Brasil e Doca Street é um exemplo de impunidade que não pode ser esquecido jamais. Sem ele, não haveria Antonio Marcos Pimenta Neves, que atirou em Sandra Gomide pelas costas, ou Lindomar Castilho, que baleou sua ex-mulher, Eliane de Grammont, cinco vezes ao vê-la cantar em um bar em São Paulo. São mais dois exemplos em que assassinos foram levemente castigados diante de crimes brutais, fruto de um comportamento que deve ser combatido com unhas e dentes.
Doca Street não pode ser esquecido. Sob pena de termos mais Ângelas perdendo a vida por conta de inseguranças machistas, ignóbeis e ultrapassadas. No ano passado, foram mais de 1 300 assassinatos de mulheres resultantes de motivos torpes. Na prática, essas mortes ocorreram porque os algozes se acharam no direito de ceifar essas vidas porque são homens e não poderiam ter sua vontade confrontada. Simplesmente por isso. Há ainda um caminho longo para tornar o Brasil um país maduro, com uma série de desafios a encarar nesta jornada – e, sem dúvida, erradicar o feminicídio está nesta lista de objetivos para conquistarmos uma Nação mais justa.