Lição do pleito municipal: polarização gera votos úteis e abstenções
Embora a maioria das prefeituras tenha ido para políticos de centro, é possível enxergar uma renovação da esquerda, cuja face mais visível é a de Boulos
Publicado em 30 de novembro de 2020 às, 08h20.
Última atualização em 30 de novembro de 2020 às, 08h24.
Ontem, ao acompanhar os resultados das eleições municipais, conferi que em São Paulo não houve grandes palpitações. As pesquisas apontaram uma tendência muito próxima do resultado final, com Bruno Covas reeleito com 59,4% dos votos válidos. Uma campanha sem grandes sobressaltos, apesar do crescimento de Guilherme Boulos nos últimos dias. Durante a divulgação dos votos apurados, lembrei-me das eleições recentes que trouxeram um cômputo totalmente diferente das previsões – as que ungiram Jânio Quadros, Luiza Erundina e João Doria.
O que estes pleitos têm em comum? Todos foram liquidados em um só turno (no caso de Jânio e Erundina, a regra da época não previa uma segunda etapa; já Doria levou a fatura na primeira rodada, ao contabilizar mais de 50 % dos sufrágios).
Destes três personagens, Jânio Quadros pode ser considerado o mais folclórico de todos e autor de máximas que sobrevivem à ação do tempo. Um exemplo? Certa vez, ao ser chamado de “você” por uma jornalista que lhe perguntava algo em uma coletiva de imprensa, saiu-se com essa: “Intimidade gera aborrecimentos ou filhos. Como não quero aborrecimentos com a senhora, e muito menos filhos, trate-me por ‘senhor’”.
Essa frase cruzou a minha mente no exato momento em que via o número de paulistanos que preferiram não comparecer às urnas (mais de 30 %). Covas obteve cerca de 3,2 milhões de votos, mas 3,6 milhões de pessoas não escolheram candidato (abstenções, nulos e brancos). Ou seja, mais uma vez o chamado não-voto quem ganhou a eleição em São Paulo – quatro anos atrás, João Doria teve uma votação inferior à soma de abstenções, brancos e nulos.
No Rio de Janeiro e em Porto Alegre, também tivemos recordes de não participação de leitores. Estes resultados, somados ao volume enorme de eleitores que votaram sem convicção em Covas ou Boulos, fez-me concluir, à lá Jânio, que a polarização política gera duas coisas: votos úteis e abstenções.
Covas, uma prata da casa do PSDB, não pode ser considerado exatamente um ícone da direita (esquerda raiz, da mesmo forma, nem pensar). Mas, ao ser comparado com Boulos, torna-se um conservador de primeira ordem e acabou encarnando o papel de antagonista das propostas elencadas pelo candidato do PSOL durante a campanha.
Ao antagonizar com Boulos, Covas atraiu sufrágios contrários à esquerda vindos de vários espectros ideológicos, até de convictos militantes contrários ao governador João Doria, considerado o padrinho político do prefeito (ainda assim, houve apoiadores do presidente Jair Bolsonaro que resolveram votar em Boulos, na linha “apoiar o inimigo do meu inimigo” – mas estes formaram um grupo diminuto e abilolado).
Embora a maioria das prefeituras tenha sido arrematada por políticos de centro, é possível enxergar uma renovação da esquerda, cuja face mais visível é a de Guilherme Boulos. O Partido dos Trabalhadores, desgastado pela fadiga de material e pela imagem indelevelmente ligada à corrupção, não conseguiu eleger um só prefeito de capital e ainda enfrentou um vexame gigantesco em São Paulo.
Boulos conseguiu se transformar em um ícone da nova esquerda e investiu no eleitorado jovem. Esta juventude, no entanto, não forma necessariamente um contingente socialista dentro do eleitorado paulistano. A ideia de justiça social, evidentemente, seduz a mocidade – mas os fundamentos econômicos do socialismo ainda não foram exatamente discutidos ou abraçados por esta faixa etária. Boulos conseguiu emplacar um discurso moderado e abraçou bandeiras da diversidade (em seu discurso reconhecendo a derrota afirmou respeitar “todas as formas de amor”) e da mudança.
O PSOL investiu em mídias sociais e se vendeu como o desafiante ao status quo representado pelo prefeito Bruno Covas. Boulos conseguiu se apresentar como o maior opositor ao conservadorismo (que tem em Jair Bolsonaro seu símbolo máximo, embora existam conservadores que não concordem com o presidente) e se apresentou como um agente de transformação. Neste sentido, mesmo derrotado, o candidato do PSOL pode ser considerado um vencedor. Dois anos atrás, como candidato a presidente, amealhou 76 953 votos no município de São Paulo. Ontem, obteve 2,2 milhões.
Este capital político perdurará? Antes de responder, lembremos do exemplo de Márcio França. Em 2018, ele teve mais votos que o oponente João Doria na capital paulista. Essa performance o credenciava com força para a disputa em torno da prefeitura no atual pleito. Mas o fato é que França perdeu um volume considerável de apoio em dois anos.
Explica-se essa queda pelo fato de França ter se posicionado mais como um anti-Doria do que ter brandido um estandarte próprio de propostas. Boulos, ao contrário do candidato do PSB, desembainhou uma agenda de costumes alinhada com os jovens, além de propostas sociais que agradaram os eleitores de esquerda. Pode-se não concordar com ele. Mas não se pode acusá-lo de pecar pela falta de projetos. Além disso, Guilherme Boulos é carismático, se expressa muito bem e é considerado inteligente (ao manifestar sua opinião sobre o rombo da previdência, entretanto, saiu-se com uma patacoada, que foi negada mais tarde. Para variar, o candidato disse que a frase foi tirada de contexto. Descontextualizado ou não, o raciocínio é completamente sem sentido).
Ou seja, nessa reorganização política, Boulos pode ser um novo Lula. Além disso, o PT caminha célere para o ostracismo enquanto o PSOL deve assumir nas próximas eleições legislativas o papel de maior agremiação de esquerda no Brasil. A sigla de Boulos seguiu a lição do ex-presidente petista e adotou um discurso menos radical e agressivo para ampliar sua base eleitoral. Sem nódoas de corrupção em seu passado, o partido deve assumir os eleitores de esquerda que hoje rejeitam o PT e se sentem representados pelo discurso de Boulos e companhia. Resta a saber se não recairá sobre o candidato derrotado à prefeitura de São Paulo o mesmo fenômeno que atingiu Márcio França – o esvaziamento político. Provavelmente, o representante do PSOL vai agora crescer nacionalmente e tem tudo para levar sua sigla a um papel de protagonismo já nas próximas eleições legislativas.