Exame.com
Continua após a publicidade

Liberalismo pela metade não funciona

Vivemos o segundo ano de pandemia. Em seguida, teremos as eleições. Portanto, não é de se esperar que tenhamos grandes arroubos liberais daqui para frente

 (Marcos Corrêa/PR/Flickr)
(Marcos Corrêa/PR/Flickr)
M
Money Report – Aluizio Falcão Filho

Publicado em 15 de março de 2021 às, 09h40.

Liberalismo é como gravidez. Não existe mulher meio grávida – o mesmo ocorre com uma agenda liberal pela metade. Ao contrário do keynesianismo ou mesmo do socialismo, esta é uma linha econômica que apenas funciona se for abraçada por inteiro. Soluções que ficam no meio do caminho, como a adotada pela Argentina de Maurício Macri, não levam a nada.

O liberalismo pode ser adotado na democracia e nos regimes de exceção. Trata-se de uma solução econômica que, quando aplicada por inteiro, traz prosperidade e a riqueza criada beneficia a todos (sim, os ricos ficam mais ricos; mas os pobres ficam menos pobres e conseguem ascender socialmente). Tivemos experiências liberais no Chile, sob o ditador Augusto Pinochet, e nos Estados Unidos, durante o governo Ronald Reagan. Nos dois casos, experimentou-se crescimento econômico expressivo. Mas devemos fazer a ressalva de que benefícios econômicos não devem ser obtidos à custa da perda de liberdades individuais e democráticas.

Feita esta observação, vale a pena lembrar o cenário econômico em que os Estados Unidos viviam sob o governo de Jimmy Carter, que durou de 1977 a 1981. Embora tivesse levantado mundialmente uma bandeira importante na década de 1970 – os direitos humanos, em uma época na qual a América Latina inteira era tomada por ditaduras militares –, a gestão econômica de Carter foi um desastre e o país enfrentou os efeitos nefastos da combinação contraditória: econômica estagnada e inflação em alta (a chamada estagflação). Foi um período que os EUA enfrentaram o segundo choque do petróleo, é verdade, mas Carter não conseguiu reagir às dificuldades e teve sua popularidade corroída mês após mês.

Reagan foi eleito e nomeou como secretário do Tesouro o CEO da Merrill Lynch, Donald Thomas Regan, que implementou uma agenda liberal de cabo a rabo, cortando impostos logo no início de sua gestão. A ideia básica era simples: ao reduzir tributos, os recursos que sobrariam na mão de empresários seriam investidos na cadeia produtiva, gerando mais riqueza e empregos. Com o crescimento da economia, a arrecadação, apesar das tesouradas nos impostos, subiriam.

Ao final dos oito anos com Reagan, o PIB americano teve uma taxa média anual de crescimento de 3,6 %, contra 2,7 % médios nos oito anos anteriores que compuseram as gestões de Carter, Gerald Ford e Richard Nixon (lembrando que, no escândalo de Watergate, Nixon renunciou e foi substituído por Ford). A arrecadação, por sua vez, saiu de US$ 599 bilhões em 1981 para US$ 991 bilhões em 1988 (números da época, sem correção).

A fórmula deu tão certo que Regan foi, no segundo mandato presidencial, levado à posição de Chefe de Gabinete da Casa Branca, um cargo semelhante ao do Chefe da Casa Civil no Planalto. Foi aí que seus problemas começaram, pois suas decisões foram seguidamente questionadas pela Primeira-Dama, Nancy Reagan. Mais tarde, soube-se que ela tinha como conselheira uma astróloga, que lhe dizia o que seria bom ou ruim para os Estados Unidos em cada uma das semanas do ano. Todas as decisões de Regan como chefe de Gabinete foram submetidas a essa especialista em astrologia, chamada Joan Quigley. Como a história brasileira mostra, alguns astrólogos têm, de fato, essa capacidade de se aproximar de presidentes e tentar tutelá-los em suas decisões.

Voltando a Regan: uma agenda liberal parruda colocou a economia americana nos trilhos e provocou uma onda de empreendedorismo e bonança. Mas não houve hesitação ou demora. Desde o primeiro momento, se montou um arcabouço com ferramentas liberais e a economia se recuperou a partir do segundo semestre de 1982.

Aqui no Brasil, em 2018, um governo foi eleito com a promessa de se utilizar esses preceitos econômicos. Ao comparecer no programa Roda Viva, da TV Cultura, o então candidato Jair Bolsonaro ouviu a seguinte pergunta: “Qual é o seu maior sonho?”. A resposta, sem titubeio, mas num tom de voz um tanto tímido, foi: “Fazer do Brasil uma nação liberal”.

Com a nomeação de Paulo Guedes para o ministério da Economia, esperava-se que haveria uma estratégia à lá Donald Regan. Uma equipe foi formada com vários representantes da fina flor do liberalismo brasileiro – cuja estrela maior, diga-se, sempre foi o ministro Guedes. O tempo foi passando e alguns itens da pauta liberal foram implementados. Porém, os mais importantes, como as privatizações, reforma tributária e incentivos ao empreendedorismo foram ficando pelo caminho.

Quando o governo era recém-eleito e possuía enorme capital político, não se tomou decisões que poderiam ser questionadas pela esquerda – como um projeto ambicioso de privatizações. Agora, vivemos o segundo ano de pandemia. Em seguida, teremos as eleições. Portanto, não é de se esperar que tenhamos grandes arroubos liberais daqui para frente. Haverá uma ou outra decisão que contemple o liberalismo, mas nada parecido com as expectativas geradas pelo discurso ouvido no início de 2019.

Muitos liberais acham que, com tanta gente querendo turbinar os investimentos estatais e explodir o teto dos gastos públicos, é melhor que Guedes esteja lá para impedir alguma loucura econômica mais extrema. Talvez seja o melhor. No entanto, não deixa de ser triste observar que o tamanho de Guedes e de suas expectativas sofreu uma drástica diminuição nesses últimos meses. É como se ele tivesse sido, na prática, rebaixado de diretor da escola para bedel dos alunos. E se contentado em seu novo papel: vigiar a garotada para evitar que as crianças façam mais travessuras do que deveriam.