Kassio Marques seria contratado em uma empresa privada?
Se, no universo privado, uma indicação com fraudes no currículo naufragaria e se procuraria outro postulante ao cargo, em Brasília ocorre o contrário
isabelarovaroto
Publicado em 19 de outubro de 2020 às 11h08.
Vamos imaginar que há uma vaga de diretor jurídico em uma grande empresa. O CEO resolve ouvir alguns amigos, em vez de chamar uma empresa de headhunter, e bate o martelo em torno de um nome, sabendo que o Conselho de Administração precisa aprovar sua escolha. Entre o anúncio de sua decisão e a reunião na qual os conselheiros serão apresentados ao candidato à vaga, entretanto, surgem evidências fortes de que o currículo apresentado foi turbinado. E que teses universitárias e artigos publicados na imprensa por este profissional contêm grandes indícios de plágio ou de cópia de textos atribuídos a terceiros.
No ambiente corporativo, o que aconteceria? Seguramente, esse candidato seria descartado e a reunião com o Conselho de Administração jamais ocorreria. O caso hipotético descrito acima tem todas as suas características copiadas de uma situação vivida no mundo real – a escolha do desembargador Kássio Nunes Marques pelo presidente Jair Bolsonaro para ocupar a vaga do ministro Celso de Mello, que se aposenta agora do Supremo Tribunal Federal.
Se, no universo privado, a indicação naufragaria e se procuraria outro postulante ao cargo, em Brasília ocorre o contrário. Marques já foi flagrado em algumas gambiarras intelectuais (assim como o ministro Alexandre Moraes, diga-se) e sua candidatura continua de pé. Será sabatinado depois de amanhã pelo Senado e as chances de ter seu nome aprovado, até agora, são bem razoáveis.
É de se esperar de qualquer magistrado nada menos que um comportamento exemplar. Os juízes da Alta Corte deveriam ser modelos de conduta e donos de uma ficha corrida impoluta e exemplar. O mundo ideal, frise-se, está bem longe da realidade. Mas, no caso específico de Marques, teremos alguém no STF que carregou nas tintas do próprio currículo. Como um indivíduo com essa atitude pode julgar os outros em processos de última instância?
Estamos vivendo uma fase muito complicada no cenário político, no qual vemos uma disposição em nivelar tudo por baixo. Um dos argumentos mais usados nos primeiros meses de governo, quando se levantava crítica a algum nome escolhido pelo governo, era: “Pelo menos não é alguém do PT”. Bem, talvez esse não seja o caso do indicado ao STF, já que ele se tornou desembargador do TRF-1 justamente pelas mãos da ex-presidente Dilma Rousseff.
Marques é apenas uma peça no jogo político engendrado por Bolsonaro e o Centrão. Ele é respaldado pelo grupo político que apoia o presidente e sua candidatura foi abraçada com disciplina pelo Planalto.
Mas, antes de se escolher o postulante ao Supremo, não seria o caso de verificar o currículo publicado na plataforma Lattes?
Em tese, essa seria uma atribuição da Abin – mas claramente percebe-se que a agência tem um comportamento inerte quando se trata de investigar quem o presidente deseja nomear para
alguma posição importante. O caso de Carlos Alberto Decotelli, apontado para a pasta da Educação, foi semelhante. A Abin foi incapaz de detectar as incongruências no resumo profissional divulgado pelo educador.
Convenhamos: há uma multidão de gente que exagera ou até mente em seus CVs. Mas uma agência como a Abin, para prevenir vexames, precisa se mexer nessas situações. Como é que os jornalistas conseguem descobrir esses exageros? Simplesmente ligando para as universidades que são mencionadas nos currículos. Tudo o que se precisa é de uma linha telefone, uma conta de e-mail e boa vontade para buscar inconsistências. Desta lista de três características, os arapongas da Abin possuem apenas as duas primeiras – justamente aquelas que não servem para muita coisa sem a terceira.
Até quando a sociedade vai ficar sabendo dos malfeitos nos currículos de candidatos a postos públicos importantes através da imprensa? Como é que a Abin não consegue mostrar ao presidente algo que um estagiário de jornalismo é capaz de realizar em questão de um dia? Dados de nove anos atrás apontam que havia 1 600 funcionários nessa agência. Nenhum deles é capaz de checar as informações contidas em um mero CV?
É humilhante para um órgão que tem a palavra “inteligência” em seu nome agir de forma tão imprudente, desleixada e inepta. E nada inteligente.
Vamos imaginar que há uma vaga de diretor jurídico em uma grande empresa. O CEO resolve ouvir alguns amigos, em vez de chamar uma empresa de headhunter, e bate o martelo em torno de um nome, sabendo que o Conselho de Administração precisa aprovar sua escolha. Entre o anúncio de sua decisão e a reunião na qual os conselheiros serão apresentados ao candidato à vaga, entretanto, surgem evidências fortes de que o currículo apresentado foi turbinado. E que teses universitárias e artigos publicados na imprensa por este profissional contêm grandes indícios de plágio ou de cópia de textos atribuídos a terceiros.
No ambiente corporativo, o que aconteceria? Seguramente, esse candidato seria descartado e a reunião com o Conselho de Administração jamais ocorreria. O caso hipotético descrito acima tem todas as suas características copiadas de uma situação vivida no mundo real – a escolha do desembargador Kássio Nunes Marques pelo presidente Jair Bolsonaro para ocupar a vaga do ministro Celso de Mello, que se aposenta agora do Supremo Tribunal Federal.
Se, no universo privado, a indicação naufragaria e se procuraria outro postulante ao cargo, em Brasília ocorre o contrário. Marques já foi flagrado em algumas gambiarras intelectuais (assim como o ministro Alexandre Moraes, diga-se) e sua candidatura continua de pé. Será sabatinado depois de amanhã pelo Senado e as chances de ter seu nome aprovado, até agora, são bem razoáveis.
É de se esperar de qualquer magistrado nada menos que um comportamento exemplar. Os juízes da Alta Corte deveriam ser modelos de conduta e donos de uma ficha corrida impoluta e exemplar. O mundo ideal, frise-se, está bem longe da realidade. Mas, no caso específico de Marques, teremos alguém no STF que carregou nas tintas do próprio currículo. Como um indivíduo com essa atitude pode julgar os outros em processos de última instância?
Estamos vivendo uma fase muito complicada no cenário político, no qual vemos uma disposição em nivelar tudo por baixo. Um dos argumentos mais usados nos primeiros meses de governo, quando se levantava crítica a algum nome escolhido pelo governo, era: “Pelo menos não é alguém do PT”. Bem, talvez esse não seja o caso do indicado ao STF, já que ele se tornou desembargador do TRF-1 justamente pelas mãos da ex-presidente Dilma Rousseff.
Marques é apenas uma peça no jogo político engendrado por Bolsonaro e o Centrão. Ele é respaldado pelo grupo político que apoia o presidente e sua candidatura foi abraçada com disciplina pelo Planalto.
Mas, antes de se escolher o postulante ao Supremo, não seria o caso de verificar o currículo publicado na plataforma Lattes?
Em tese, essa seria uma atribuição da Abin – mas claramente percebe-se que a agência tem um comportamento inerte quando se trata de investigar quem o presidente deseja nomear para
alguma posição importante. O caso de Carlos Alberto Decotelli, apontado para a pasta da Educação, foi semelhante. A Abin foi incapaz de detectar as incongruências no resumo profissional divulgado pelo educador.
Convenhamos: há uma multidão de gente que exagera ou até mente em seus CVs. Mas uma agência como a Abin, para prevenir vexames, precisa se mexer nessas situações. Como é que os jornalistas conseguem descobrir esses exageros? Simplesmente ligando para as universidades que são mencionadas nos currículos. Tudo o que se precisa é de uma linha telefone, uma conta de e-mail e boa vontade para buscar inconsistências. Desta lista de três características, os arapongas da Abin possuem apenas as duas primeiras – justamente aquelas que não servem para muita coisa sem a terceira.
Até quando a sociedade vai ficar sabendo dos malfeitos nos currículos de candidatos a postos públicos importantes através da imprensa? Como é que a Abin não consegue mostrar ao presidente algo que um estagiário de jornalismo é capaz de realizar em questão de um dia? Dados de nove anos atrás apontam que havia 1 600 funcionários nessa agência. Nenhum deles é capaz de checar as informações contidas em um mero CV?
É humilhante para um órgão que tem a palavra “inteligência” em seu nome agir de forma tão imprudente, desleixada e inepta. E nada inteligente.