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Facebook, Uber e iFood: a fábula do Patinho Feio às avessas

O problema da rede social de Mark Zuckerberg talvez seja o mais complicado: ela viu uma fileira de grandes anunciantes boicotar seus 2,5 bilhões de usuários

Mark Zuckerberg: depois de muita pressão, o executivo aceitou auditoria sobre controle ao discurso de ódio em sua empresa (Leah Millis/Reuters)
Mark Zuckerberg: depois de muita pressão, o executivo aceitou auditoria sobre controle ao discurso de ódio em sua empresa (Leah Millis/Reuters)
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Money Report – Aluizio Falcão Filho

Publicado em 1 de julho de 2020 às, 08h01.

No mundo dos aplicativos, há um fenômeno curioso. Alguns deles surgem e encantam a todos, virando uma espécie de unanimidade internacional. Depois de um tempo, no entanto, essas empresas acabam enfrentando problemas (muitas vezes causados por seu próprio modelo de negócios) e se veem no meio de uma crise. Parece o oposto de uma fábula conhecida: começam como um cisne deslumbrante que se transforma, aos poucos, em um patinho feio.

Facebook, Uber e, agora, os aplicativos de delivery, como iFood e Rappi, estão enfrentando situações que nem de longe lembram os tempos em que foram considerados modelos revolucionários de negócios e exemplos a ser seguidos pelas empresas do mundo analógico.

O problema da rede social comandada por Mark Zuckerberg talvez seja o mais complicado. Em função de um tratamento, digamos, leniente com grupos que abusavam do chamado discurso do ódio, o Facebook viu uma fileira de grandes anunciantes boicotar um universo que reúne 2,5 bilhões de usuários.

A Unilever começou o movimento e grandes nomes da publicidade foram atrás. Estima-se que a campanha “Stop Hate That Gain Profits” (“Um basta ao ódio que dá lucro”) tenha limado quase US$ 60 bilhões do valor de mercado do Facebook, algo equivalente a nove meses de receita líquida da Petrobras durante o ano de 2019.

No Uber, houve diversos tipos de controvérsia, desde acusações de assédio sexual por parte de diretores junto ao staff feminino até o vazamento de um plano de um dos vice-presidentes da empresa para atacar a imprensa. Emil Michael, VP de desenvolvimento de negócios, sugeriu (“off the records”) a um colunista que poderia teoricamente contratar investigadores para pesquisar a vida dos repórteres que cobriam os negócios da empresa. A ideia seria virar do avesso “as vidas particulares e as de suas famílias” para que os jornalistas “provassem do próprio veneno”. Michael acabou deixando a empresa em 2017 e outras crises de imagem ocorreram de lá para cá. Nessa lista de ocorrências, há algo frequente: os ataques sofridos por seus parceiros, os motoristas.

Essa, aliás, é a celeuma da vez para aplicativos de delivery, com iFood e Rappi à frente. Está marcada para hoje uma greve de entregadores, organizada pelos grupos de mídia social e sem a interferência dos sindicatos da categoria (os líderes do movimento esperam uma adesão mínima de 50 % em São Paulo e de 70% no Rio de Janeiro). Motoqueiros e ciclistas reclamam das tarifas recebidas e citam valores ínfimos que seriam auferidos por entrega (somas essas que são contestadas pelas empresas que os contratam). Quem tem a razão? Ainda não se sabe. Mas o zunzunzum já é o suficiente para afastar clientes e gerar desconforto nos usuários. Ao lado disso, esses aplicativos ganharam um fluxo de negócios enorme durante a pandemia, gerando gargalos no sistema e atrasos nos deliveries – o que é gasolina aditivada para reclamações na cena virtual, especialmente nos sites de defesa ao consumidor.

O mundo de hoje, regido pelas redes sociais, dá muita importância à opinião pública manifestada pela internet. Muitas vezes, não é nem a maioria dos consumidores que externa seu julgamento – apenas uma minoria ruidosa. Mas o estrago está feito, uma vez que a semente da dúvida é plantada na mente daqueles que se viam como clientes fiéis de uma empresa atacada pelo grupo de detratores raivosos.

Anteontem, fizemos um webinar sobre os desafios que a pandemia descortinou sobre a transformação digital no governo e na iniciativa privada. Um dos debatedores, Laércio Albuquerque, CEO da Cisco no Brasil, disse algo marcante: muitos aplicativos estão perdendo mercado, na inércia provocada pelo coronavírus, para outros que mostram maior eficácia. Ou seja, a lealdade a uma determinada marca é algo cada vez mais difícil de se obter nos dias de hoje.

Some-se um concorrente mais eficaz a algum problema enfrentado na seara da imagem pública e voilá! Teremos uma receita perfeita para que o consumidor mude totalmente de direção e troque, sem nenhum peso na consciência, de ferramenta digital. A lealdade é um conceito que está em xeque e precisa ser reestudado em um cenário no qual se tem enorme quantidade de opções, preços cada vez menores e quebra seguida de paradigmas.

Geralmente questões como as enfrentadas por Facebook, Uber e iFood são decorrentes de uma governança um tanto frouxa, que atua sem dar muita importância às áreas de compliance. Entende-se a dificuldade. Afinal, a turma da conformidade geralmente é vista como a reunião dos chatos do pedaço – e sempre há aqueles que veem nesse grupo apenas frustrados que querem barrar todas as vendas que enxergam pela frente. Em algum momento do passado, esse cenário até foi próximo da realidade.

Mas, hoje, as equipes de governança querem ajudar as empresas a fechar negócios dentro das regras de boa conduta. Algumas das situações descritas acima poderiam ser evitadas se houvesse o cumprimento de normas que ajudariam a empresa a não errar.

Para desespero dos politicamente incorretos, trata-se de um cenário que veio para ficar. Cada vez mais, o mundo se fechará contra o preconceito, a intolerância e a falta de empatia. Todas as empresas vão sofrer os efeitos deste ajuste. Mas são os aplicativos e as startups de sucesso que estarão embaixo dos holofotes e serão mais cobradas que as demais. Existem duas razões para isso. Comecemos pelo sucesso, que atrai os olhares de curiosos e da imprensa de maneira geral. Outro ponto que chama a atenção é a disrupção de conceitos, que encanta fãs jovens e totalmente alinhados com temas de correção política. Uma vez frustrados, esses jovens atacam ferozmente aqueles que os desapontaram.

É aqui que está o grande desafio. Trata-se de lidar com milhares de postagens ao mesmo tempo, muitas delas contendo críticas exaltadas. Neste mundo de revoltados online que agem em bloco, o lema “é melhor prevenir do que remediar” nunca foi tão valioso. Por isso, quem está surfando a onda das startups e almeja a condição de unicórnio precisa prestar mais atenção em seus processos internos. É a melhor fórmula para não protagonizar – como Facebook, Uber e iFood – a fábula do Patinho Feio às avessas.