Chico e Caetano seriam de esquerda em uma ditadura socialista?
Em momento de imaginar realidades paralelas, fico pensando no que teria acontecido com esses nomes da MPB se vivêssemos sob regime ditatorial de esquerda
Da Redação
Publicado em 29 de agosto de 2020 às 12h58.
Ultimamente, estou abusando do direito de pensar em realidades paralelas, no estilo “what if” (“e se”, em inglês) – especialmente nos finais de semana. Talvez seja um reflexo da pandemia, que me faz devanear mais que o normal. Recentemente, Caetano Veloso completou 78 anos e fez uma “live” comemorativa. A comoção em torno deste evento digital me fez pensar bastante no compositor baiano e, por associação de ideias, também em outro ícone da Música Popular Brasileira – Chico Buarque de Holanda.
Nos últimos tempos, tanto Caetano como Chico reforçaram seu status de ícones da esquerda, especialmente no período que compreende dos estertores finais de Dilma Rousseff ao início dos anos Jair Bolsonaro .
A identificação de ambos com o esquerdismo tem muito a ver com o governo militar. Caetano chegou a ser preso e amargou um exílio em Londres, onde compôs “London, London”. Mas nunca chegou a escrever canções panfletárias, como Geraldo Vandré (curiosamente, “Caminhando – Para Não Dizer que Não Falei de Flores” é hoje até cantada ou recitada em eventos nada esquerdistas, como convenções de empresas multinacionais). Tampouco produziu letras com mensagens cifradas para burlar a censura, um ofício polido com maestria por Chico Buarque (apesar dos problemas com a censura, Chico nunca foi preso e se exilou por conta própria na Itália).
Em meu momento de imaginar realidades paralelas, fico pensando no que teria acontecido com esses dois grandes nomes da MPB se vivêssemos sob a égide de um regime ditatorial de esquerda como o de Cuba. Caetano e Chico ainda seriam vozes representativas do esquerdismo?
Arrisco dizer que provavelmente eles seriam identificados com a oposição a este tipo de governo. Quando ouvimos as letras mais contundentes de Chico Buarque (“Apesar de Você”, “Tanto Mar”, “Roda Viva” ou “Cálice”), percebemos que a crítica está muito mais associada à falta do livre pensar e à repressão em si. Não há exatamente uma tentativa de se tecer loas ao socialismo ou ao comunismo. Tomemos uma letra como “Construção”, “Cotidiano” ou “Pedro Pedreiro”. Nestas três composições, Chico retrata a vida de um trabalhador muito mais sob a ótica de um cronista do que da de um ativista político.
Já na obra de Caetano não se enxerga muito essa veia política, embora duas canções em particular tenham incomodado os militares: “Tropicália” e “É Proibido Proibir”. A primeira tem sutis insinuações sobre Brasília, seus monumentos e falta de consistência de seus comandantes – mas, sinceramente, 95 % das pessoas não devem ter sequer notado essas alusões. Já a segunda é uma citação direta aos movimentos estudantis de protesto na França em maio de 1968. Melhor que a música em si é a gravação ao vivo desta canção.
Caetano apresentou a canção em um festival de música e levou uma vai estrondosa. Irritadíssimo, explodiu: “Mas é isso que é a juventude que diz que quer tomar o poder? Vocês têm coragem de aplaudir, este ano, uma música, um tipo de música que vocês não teriam coragem de aplaudir no ano passado! São a mesma juventude que vão sempre, sempre, matar amanhã o velhote inimigo que morreu ontem! Vocês não estão entendendo nada, nada, nada, absolutamente nada. (...) Mas que juventude é essa? Que juventude é essa? Vocês jamais conterão ninguém. (..) O problema é o seguinte: vocês estão querendo policiar a música brasileira. Se vocês, em política, forem como são em estética, estamos feitos!”.
Percebe-se que Caetano é um artista contra qualquer tipo de patrulhamento, incluindo aquele vindo do público. Uma personalidade como esta sobreviveria sob Fidel Castro ou Stálin? Dificilmente. O baiano passou boa parte do tempo às turras com o ex-governador Antônio Carlos Magalhães, mas o elogiou em alguns momentos. Chegou a chamá-lo de “lindo” em uma ocasião. Também não parece ser o comportamento de um comunista padrão.
Fala-se muito do esquerdismo destes dois músicos. Mas as duas obras, em sua esmagadora maioria, retrata temas diversos, que pouco têm a ver com a política. Cito, neste caso, dois exemplos.
De Caetano Veloso, destaco a canção “Trilhos Urbanos”, de 1979. Trata-se de uma colagem de lembranças de sua infância na cidadezinha baiana de Santo Amaro da Purificação e de momentos de sua vida atual. Esta canção tem o verso mais surpreendente que já ouvi e considero uma obra-prima: “Pena de pavão de Krishna/ Maravilha, vixe, Maria Mãe de Deus”. Rimar “Krishna” com “vixe, Ma” não é para qualquer poeta.
De Chico Buarque, destaco “Minha História”, a versão em português que fez para “Gesùbambino”, de Lucio Dalla. Tinha oito anos quando ouvi essa música e foi a primeira vez que me emocionei com uma canção. São versos poderosos e que narram a história do filho de uma prostituta que deu à criança o nome de Jesus: “ Quando enfim eu nasci minha mãe embrulhou-me num manto/ Me vestiu como se eu fosse assim uma espécie de santo/ Mas por não se lembrar de acalantos, a pobre mulher/ Me ninava cantando cantigas de cabaré”.
Chico, durante anos, foi uma unanimidade no Olimpo musical. Mas, em 1979, Rita Lee e Paulo Coelho compuseram uma canção que parodiava “Festa de Arromba”, um sucesso da Jovem Guarda na voz de Erasmo Carlos, que citava vários integrantes do iê-iê-iê nacional. A música, “Arrombou a Festa II” satirizava várias estrelas da MPB e tinha um trecho que acertava em cheio o autor de “A Banda”: “E o Chico na piscina grita logo pro garçom/ Afaste esse cálice e me traz Moët & Chandon”. Talvez tenha sido esse o primeiro registro artístico do conceito de esquerda caviar, que entraria na moda apenas no século 21.
É uma tarefa árdua separar o artista da pessoa. Mas isso não vale apenas para Chico e Caetano, se você não concorda com suas posições políticas. Mas há casos piores. Muitos seres humanos desprezíveis foram músicos, escritores e atores extremamente talentosos. E ganharam, ou ganham até hoje, o aplauso de multidões.
Um último comentário sobre Chico Buarque.
Estava eu com 20 anos de idade e iniciava uma conversa com uma fã do compositor. Estava rolando um clima e ela começou a falar com entusiasmo sobre a obra de Chico. Caí na besteira de comentar que ele, quando assumia o eu lírico feminino, transformava as mulheres de suas narrativas em verdadeiras coitadas. Dei como exemplo “Com Açúcar e Com Afeto” (“Com açúcar e com afeto/ Fiz seu doce predileto/ Para você parar em casa/ Qual o quê”) e “Mulheres de Atenas” (“Quando eles se entopem de vinho/ Costumam buscar um carinho/ De outras falenas/ Mas no fim da noite, aos pedaços/ Quase sempre voltam pros braços/ De suas pequenas, Helenas”). OK, era uma exagero. Mas eu tinha vinte anos e me senti inteligente com a observação. A moça ficou possessa: “Isso é loucura sua, o Chico é ma-ra-vi-lho-so”. Percebendo que o clima entre nós tinha azedado rapidamente, resolvi chutar o pau da barraca. “O Chico é um grande letrista. Mas eu me pergunto: ele faria o mesmo sucesso com as mulheres se fosse parecido com o Zacarias, dos Trapalhões?”, cutuquei.
Desnecessário dizer que a garota me deixou falando sozinho – e que nunca mais a vi. Afoguei as mágoas ouvindo “Retrato em Branco e Preto”, talvez a melhor letra de desencontro amoroso que já escutei: “Ainda volto a lhe escrever/ Pra lhe dizer que isso é pecado/ Eu trago o peito tão marcado/ De lembranças do passado/ E você sabe a razão/ Vou colecionar mais um soneto/ Outro retrato em branco e preto/ A maltratar meu coração”.
Poesia pura, traduzindo de forma rara a dor do amor não correspondido. É arte legítima, em seu estado bruto, acima de qualquer ideologia. Pensando bem, a moça tinha razão. Chico é ma-ra-vi-lho-so.
Ultimamente, estou abusando do direito de pensar em realidades paralelas, no estilo “what if” (“e se”, em inglês) – especialmente nos finais de semana. Talvez seja um reflexo da pandemia, que me faz devanear mais que o normal. Recentemente, Caetano Veloso completou 78 anos e fez uma “live” comemorativa. A comoção em torno deste evento digital me fez pensar bastante no compositor baiano e, por associação de ideias, também em outro ícone da Música Popular Brasileira – Chico Buarque de Holanda.
Nos últimos tempos, tanto Caetano como Chico reforçaram seu status de ícones da esquerda, especialmente no período que compreende dos estertores finais de Dilma Rousseff ao início dos anos Jair Bolsonaro .
A identificação de ambos com o esquerdismo tem muito a ver com o governo militar. Caetano chegou a ser preso e amargou um exílio em Londres, onde compôs “London, London”. Mas nunca chegou a escrever canções panfletárias, como Geraldo Vandré (curiosamente, “Caminhando – Para Não Dizer que Não Falei de Flores” é hoje até cantada ou recitada em eventos nada esquerdistas, como convenções de empresas multinacionais). Tampouco produziu letras com mensagens cifradas para burlar a censura, um ofício polido com maestria por Chico Buarque (apesar dos problemas com a censura, Chico nunca foi preso e se exilou por conta própria na Itália).
Em meu momento de imaginar realidades paralelas, fico pensando no que teria acontecido com esses dois grandes nomes da MPB se vivêssemos sob a égide de um regime ditatorial de esquerda como o de Cuba. Caetano e Chico ainda seriam vozes representativas do esquerdismo?
Arrisco dizer que provavelmente eles seriam identificados com a oposição a este tipo de governo. Quando ouvimos as letras mais contundentes de Chico Buarque (“Apesar de Você”, “Tanto Mar”, “Roda Viva” ou “Cálice”), percebemos que a crítica está muito mais associada à falta do livre pensar e à repressão em si. Não há exatamente uma tentativa de se tecer loas ao socialismo ou ao comunismo. Tomemos uma letra como “Construção”, “Cotidiano” ou “Pedro Pedreiro”. Nestas três composições, Chico retrata a vida de um trabalhador muito mais sob a ótica de um cronista do que da de um ativista político.
Já na obra de Caetano não se enxerga muito essa veia política, embora duas canções em particular tenham incomodado os militares: “Tropicália” e “É Proibido Proibir”. A primeira tem sutis insinuações sobre Brasília, seus monumentos e falta de consistência de seus comandantes – mas, sinceramente, 95 % das pessoas não devem ter sequer notado essas alusões. Já a segunda é uma citação direta aos movimentos estudantis de protesto na França em maio de 1968. Melhor que a música em si é a gravação ao vivo desta canção.
Caetano apresentou a canção em um festival de música e levou uma vai estrondosa. Irritadíssimo, explodiu: “Mas é isso que é a juventude que diz que quer tomar o poder? Vocês têm coragem de aplaudir, este ano, uma música, um tipo de música que vocês não teriam coragem de aplaudir no ano passado! São a mesma juventude que vão sempre, sempre, matar amanhã o velhote inimigo que morreu ontem! Vocês não estão entendendo nada, nada, nada, absolutamente nada. (...) Mas que juventude é essa? Que juventude é essa? Vocês jamais conterão ninguém. (..) O problema é o seguinte: vocês estão querendo policiar a música brasileira. Se vocês, em política, forem como são em estética, estamos feitos!”.
Percebe-se que Caetano é um artista contra qualquer tipo de patrulhamento, incluindo aquele vindo do público. Uma personalidade como esta sobreviveria sob Fidel Castro ou Stálin? Dificilmente. O baiano passou boa parte do tempo às turras com o ex-governador Antônio Carlos Magalhães, mas o elogiou em alguns momentos. Chegou a chamá-lo de “lindo” em uma ocasião. Também não parece ser o comportamento de um comunista padrão.
Fala-se muito do esquerdismo destes dois músicos. Mas as duas obras, em sua esmagadora maioria, retrata temas diversos, que pouco têm a ver com a política. Cito, neste caso, dois exemplos.
De Caetano Veloso, destaco a canção “Trilhos Urbanos”, de 1979. Trata-se de uma colagem de lembranças de sua infância na cidadezinha baiana de Santo Amaro da Purificação e de momentos de sua vida atual. Esta canção tem o verso mais surpreendente que já ouvi e considero uma obra-prima: “Pena de pavão de Krishna/ Maravilha, vixe, Maria Mãe de Deus”. Rimar “Krishna” com “vixe, Ma” não é para qualquer poeta.
De Chico Buarque, destaco “Minha História”, a versão em português que fez para “Gesùbambino”, de Lucio Dalla. Tinha oito anos quando ouvi essa música e foi a primeira vez que me emocionei com uma canção. São versos poderosos e que narram a história do filho de uma prostituta que deu à criança o nome de Jesus: “ Quando enfim eu nasci minha mãe embrulhou-me num manto/ Me vestiu como se eu fosse assim uma espécie de santo/ Mas por não se lembrar de acalantos, a pobre mulher/ Me ninava cantando cantigas de cabaré”.
Chico, durante anos, foi uma unanimidade no Olimpo musical. Mas, em 1979, Rita Lee e Paulo Coelho compuseram uma canção que parodiava “Festa de Arromba”, um sucesso da Jovem Guarda na voz de Erasmo Carlos, que citava vários integrantes do iê-iê-iê nacional. A música, “Arrombou a Festa II” satirizava várias estrelas da MPB e tinha um trecho que acertava em cheio o autor de “A Banda”: “E o Chico na piscina grita logo pro garçom/ Afaste esse cálice e me traz Moët & Chandon”. Talvez tenha sido esse o primeiro registro artístico do conceito de esquerda caviar, que entraria na moda apenas no século 21.
É uma tarefa árdua separar o artista da pessoa. Mas isso não vale apenas para Chico e Caetano, se você não concorda com suas posições políticas. Mas há casos piores. Muitos seres humanos desprezíveis foram músicos, escritores e atores extremamente talentosos. E ganharam, ou ganham até hoje, o aplauso de multidões.
Um último comentário sobre Chico Buarque.
Estava eu com 20 anos de idade e iniciava uma conversa com uma fã do compositor. Estava rolando um clima e ela começou a falar com entusiasmo sobre a obra de Chico. Caí na besteira de comentar que ele, quando assumia o eu lírico feminino, transformava as mulheres de suas narrativas em verdadeiras coitadas. Dei como exemplo “Com Açúcar e Com Afeto” (“Com açúcar e com afeto/ Fiz seu doce predileto/ Para você parar em casa/ Qual o quê”) e “Mulheres de Atenas” (“Quando eles se entopem de vinho/ Costumam buscar um carinho/ De outras falenas/ Mas no fim da noite, aos pedaços/ Quase sempre voltam pros braços/ De suas pequenas, Helenas”). OK, era uma exagero. Mas eu tinha vinte anos e me senti inteligente com a observação. A moça ficou possessa: “Isso é loucura sua, o Chico é ma-ra-vi-lho-so”. Percebendo que o clima entre nós tinha azedado rapidamente, resolvi chutar o pau da barraca. “O Chico é um grande letrista. Mas eu me pergunto: ele faria o mesmo sucesso com as mulheres se fosse parecido com o Zacarias, dos Trapalhões?”, cutuquei.
Desnecessário dizer que a garota me deixou falando sozinho – e que nunca mais a vi. Afoguei as mágoas ouvindo “Retrato em Branco e Preto”, talvez a melhor letra de desencontro amoroso que já escutei: “Ainda volto a lhe escrever/ Pra lhe dizer que isso é pecado/ Eu trago o peito tão marcado/ De lembranças do passado/ E você sabe a razão/ Vou colecionar mais um soneto/ Outro retrato em branco e preto/ A maltratar meu coração”.
Poesia pura, traduzindo de forma rara a dor do amor não correspondido. É arte legítima, em seu estado bruto, acima de qualquer ideologia. Pensando bem, a moça tinha razão. Chico é ma-ra-vi-lho-so.