Desde o início da pandemia , vivemos um torvelinho de discussões inúteis. Primeiro, se a Covid-19 era mesmo grave ou se era semelhante a uma gripe sazonal. Depois, se o vírus havia sido uma invenção da imprensa. Tivemos também uma queda de braço em torno das propriedades da cloroquina, que resiste até os dias de hoje. Em seguida, se as vacinas funcionariam ou se causariam efeitos colaterais até capazes de provocar mutações em nosso DNA. Houve também um debate em torno dos números de vítimas da pandemia (inflados ou não?). E, recentemente, se o uso de máscaras é mesmo necessário no Brasil, já que nos Estados Unidos sua utilização não é mais obrigatória (nos EUA, cerca de quatro em cada 10 americanos tomaram as duas doses de vacina; no Brasil, apenas 11 %).
Essa narrativa tem como objetivo diminuir a importância e a gravidade da crise sanitária que vivemos. Alguns dos cidadãos que adotam esse discurso agem assim por desespero: são empreendedores que penam com o cenário econômico ou desempregados que não encontram uma recolocação. Outros, no entanto, o fazem por falta de empatia às vítimas do coronavírus – ou por um individualismo levado ao extremo.
O fato é que essas discussões ganham importância no Brasil por conta de uma divisão sem precedentes dentro da sociedade. Em poucas ocasiões tivemos grupos tão significativos contra ou a favor de um governo. Um caso recente mostra isso. Nesta semana, o presidente Jair Bolsonaro esteve no aeroporto de Vitória. Foi aplaudido por uns e vaiado por outros. Muitos, no entanto, ficaram quietos. Mas, mesmo entre esses mais tímidos, há também uma divisão entre apoiadores e apupadores silenciosos.
Não houvesse essa divisão tão forte, esses debates inócuos não teriam tomado conta da Nação e politizado o panorama em torno da Covid-19. Mas o embate de ideias entre os extremos, que começou ainda na campanha de 2018, ultrapassa as barreiras da pandemia. Para os apoiadores do governo, tudo o que o presidente Jair Bolsonaro diz está certo e precisa ser seguido. Para seus opositores, no entanto, ele é culpado de todas as mazelas brasileiras e merece um rito sumário de impeachment (um processo que, enquanto Arthur Lira for presidente da Câmara, dificilmente será levado ao plenário).
Assim, se alguém diz que a economia está se recuperando (ou “despiorando”, como falam alguns críticos do Planalto, usando um neologismo em voga), a resposta de um oposicionista pode vir brandindo o número enorme de desempregados. Se outros falam na rapidez com a qual o Brasil vacinou seus cidadãos, a réplica é a de que o país vai mal quando contabilizamos o número de mortos ou de vacinados por 100 000 habitantes.
Essa polarização só vai aumentar e gerar vítimas colaterais, como a atriz Juliana Paes. Ela criticou os extremismos em uma postagem de seu perfil em rede social e levou pauladas dos dois lados. Desagradou a esquerda por ter falado em “delírios comunistas” (o que gerou memes interessantes na rede) e a direita por ter chamado os bolsonaristas de “gado”.
O presidente continua firme em sua estratégia de provocar os adversários. Faz parte da personalidade de Bolsonaro viver no limite e tripudiar quem está no campo inimigo. Até pouco tempo atrás, isso gerava uma espécie de revolta silenciosa por parte principalmente de petistas. A esquerda, ainda envergada por conta das acusações de corrupção em cima do Partido dos Trabalhadores, reagia timidamente às provocações. Os moderados, por sua vez, foram bombardeados exaustivamente com o bordão “e se fosse o PT?” nos dois primeiros anos de governo quando manifestavam seu descontentamento.
Hoje, no entanto, tanto esquerdistas como centristas estão botando para fora sua insatisfação. Vimos há poucos dias muitas manifestações contrárias a Bolsonaro espalhadas pelo país. No sábado, porém, o presidente reuniu milhares de apoiadores para um passeio de moto em São Paulo. Embora exista uma controvérsia em torno do número verdadeiro de motos que esteve no evento, o resultado final não pode ser ignorado: a “motociata” reuniu um contingente expressivo de participantes.
A reposta da oposição, entretanto, virá logo: foram convocados atos públicos contra o presidente no dia 19. E, assim, teremos uma disputa de manifestações, contra e a favor, até a campanha (curiosamente, até agora todas marcadas em sábados). Este será mais um elemento para elevar o acirramento de ânimos e botar lenha na fogueira política. A agressividade que se vê nos últimos tempos (e a que se espera daqui para frente) nos coloca numa rota de enfrentamento que combina provocação e intolerância.
Há uma espécie de sentimento de superioridade por parte dos dois lados. Um lado se acha melhor porque segue preceitos da honestidade e da retidão; mas são enxergados como genocidas e negacionistas por seus opositores. E como esses últimos se definem? Como defensores da vida e da democracia. Mas são vistos como comunistas corruptos e degenerados do ponto de vista moral.
São visões simplistas e preconceituosas? Sim. Mas, basicamente, refletem arquétipos que se formam com base em reações emocionais. Este, no entanto, é um momento que precisamos de bom senso. Em primeiro lugar, para combater a pandemia que nos assola. Em segundo, para estender a melhora da economia à população mais carente e reduzir o desemprego. E, por fim, para fortalecer a democracia, que já é vista como um entrave institucional por muitos dos brasileiros.
Sem democracia, entretanto, a sociedade se sente sufocada e não se conforma nem com uma situação econômica confortável. O que correu no chamado Milagre Econômico, no início dos anos 1970, ilustra bem isso. A economia estava crescendo fortemente, com a prosperidade batendo à porte de todos. Tanto que o governo militar resolveu se endividar em dólares para combater a crise do petróleo e manter o Milagre de pé. Mesmo assim, nas eleições parlamentares de 1974, a oposição teve uma vitória expressiva: das vinte e duas vagas no Senado, por exemplo, a Arena obteve seis cadeiras, enquanto o MDB ficou com 16.
Esse é o sentimento vigente em qualquer sociedade: democracia sem prosperidade leva à insatisfação; o mesmo vale para a prosperidade sem democracia. Por isso, precisamos preservar nossas liberdades democráticas – e não podemos nos descuidar da economia. Para atingir esse objetivo, é necessário um mínimo de união. Isso, contudo, é algo bastante difícil de se obter nos dias de hoje. A disposição para o confronto está grande e ainda vai aumentar.
Um terceiro nome poderia pacificar a Nação? Neste momento, talvez não. Do jeito que os ódios estão encastelados, nem o mais santo dos nomes poderia agora obter o armistício que o Brasil tanto necessita.