A venda da Som Livre mostra que nada é sagrado na reinvenção da TV Globo
A holding da família Marinho precisa dar foco ao que realmente interessa e àquilo que seus profissionais sabem fazer bem
isabelarovaroto
Publicado em 23 de novembro de 2020 às 08h02.
Última atualização em 23 de novembro de 2020 às 09h19.
Em 1969, a TV Globo ainda não era o fenômeno de audiência que experimentaria na década seguinte, mas havia conseguido emplacar um grande sucesso – a novela “Véu de Noiva”. A trama, que envolvia corrida de automóveis, foi a primeira que usou o recurso “quem matou?” na dramaturgia televisiva, uma ideia que surgiu por acaso. Um dos principais atores do enredo, Geraldo Del Rey, pediu para sair da Globo para trabalhar na rival Tupi. A autora, Janete Clair, resolveu, então, matar o personagem e manter o suspense em torno da identidade do assassino.
“Véu de Noiva” foi revolucionária em vários aspectos. Duas personagens, por exemplo, brigaram na Justiça pela guarda de um menino que foi gerado por uma e criado por outra. O diretor da trama, Daniel Filho, chamou um juiz de verdade para montar um júri e apreciar o caso, com toda a liberdade para decidir. As câmaras, então, captaram uma tensão inédita nessas cenas, fruto de uma ideia ousada e criativa.
Além disso, a novela inovou por apresentar uma trilha sonora especialmente composta para seus personagens, produzida por Nelson Motta. O disco contou com composições de Chico Buarque, Caetano Veloso, Roberto Menescal e Antônio Adolfo e vendeu, na largada, 50 000 exemplares (para se ter uma ideia, ganhava o disco de ouro nessa época quem tivesse uma vendagem de 40 000 cópias). Este LP produziu um grande sucesso nacional, a canção “Tele tema”, interpretada por Regininha. A Globo recebeu uma parte do faturamento, mas a maior fatia ficou com a gravadora que bancou o projeto, a Phillips.
Foi então que João Araújo, pai do compositor Cazuza, resolveu propor à Globo que criasse seu próprio selo. Haveria custos de produção, evidentemente, mas o grande naco das vendas ficaria dentro de casa. Araújo, então, modificou ligeiramente a fórmula original, imaginada por Nelson Motta, e passou a privilegiar as trilhas internacionais das novelas, criando sucessos que tocavam na TV e empolgavam o público.
Às vezes, alguma gravadora não queria ceder o fonograma à Som Livre, como foi batizada a empresa. Neste caso, produzia-se uma regravação com um cantor brasileiro disfarçado atrás de um pseudônimo estrangeiro. Nesta onda, cantores hoje reconhecidos gravaram canções em inglês no anonimato, como Jessé (Christie De Burg) e Fábio Júnior (Mark Davis). Outros assumiram seus nomes artísticos e o usam até hoje, como Chrystian (José Pereira da Silva Neto, que fez dupla com seu irmão Ralf) e Michael Sullivan (Ivanilton de Souza Lima, que se tornaria um compositor reconhecido nacionalmente ao trabalhar com Paulo Massadas e formar o duo Sullivan & Massadas).
Quando a música negada era instrumental, não havia tempo quente. A Som Livre juntava vários músicos, que eram lançados sob a nada original alcunha de “Free Sound Orchestra”.
O negócio cresceu tanto que a gravadora passou a ter um cast próprio e chegou a ter estrelas como Rita Lee. Foi uma mina de dinheiro e ultimamente, apesar dos problemas enfrentados pelo mercado fonográfico, era lucrativa e contava com 80 artistas em seu plantel. Mesmo assim, o Grupo Globo colocou a empresa à venda.
Em meio a um difícil processo de adaptação aos novos tempos, a holding da família Marinho precisa dar foco ao que realmente interessa e àquilo que seus profissionais sabem fazer bem: conteúdo jornalístico ou de ficção em português. Um dos movimentos mais ousados neste caminho foi a criação da Globoplay, uma espécie de Netflix tupiniquim, que já conta com 20 milhões de assinantes no Brasil (a título de comparação, a Netflix tem, em território brasileiro, 17 milhões), o que significa um faturamento anual superior a US$ 1 bilhão.
Neste processo, não se pode ficar preso ao passado nem a sentimentalismos – não é à toa, por exemplo, que a emissora não renovou contratos de atores que tinham décadas de casa, como Tarcísio Meira, Gloria Menezes e Maitê Proença. A última baixa foi o jornalista Carlos Henrique Schroder, que já deixara o posto de diretor geral e agora abandona o cargo de principal executivo de produção de conteúdo. Neste redemoinho, sobraram poucos nomes antigos dentro da estrutura. Um deles é o presidente do grupo, Jorge Nóbrega, conhecido por ter, alguns anos atrás, demitido um de seus executivos em uma véspera de Natal. Dentro desse processo, no qual nada é sagrado, a Som Livre acabou virando um elefante branco, perdendo espaço, e deverá ser passada à frente sem dó.
O simbolismo dessas mudanças mostra que os acionistas da Globo resolveram deixar o passado para trás e buscar um modelo de negócios sintonizado com os novos tempos. Trata-se de uma decisão movida a valentia e a denodo, num momento em que uma boa parcela da população rejeita a TV da família Marinho e a trata por “Globolixo” nas redes sociais. Com tantos desafios e forças contrárias, é o caso de mudar ou mudar.
Afinal, o grupo está inserido no mundo empresarial, no qual tudo tem a ver com a capacidade de ser intrépido ou não. Seus horizontes podem se expandir ou diminuir – tudo vai depender do tamanho da coragem dos timoneiros da empreitada. O que acontece com a Globo reflete o que está ocorrendo em vários mercados e em inúmeras empresas: a necessidade imperativa de se transformar ou perecer. Trata-se de um processo tão rápido e violento que muitos executivos ainda estão atarantados, apesar de saber que precisam se movimentar com rapidez. No fundo, todos empresários experimentam neste período radical de transição um sentimento que foi definido por John Pierpont Morgan, há mais de cem anos: “O primeiro passo para se chegar a algum lugar é decidir que você não vai mais ficar parado onde está”.
Em 1969, a TV Globo ainda não era o fenômeno de audiência que experimentaria na década seguinte, mas havia conseguido emplacar um grande sucesso – a novela “Véu de Noiva”. A trama, que envolvia corrida de automóveis, foi a primeira que usou o recurso “quem matou?” na dramaturgia televisiva, uma ideia que surgiu por acaso. Um dos principais atores do enredo, Geraldo Del Rey, pediu para sair da Globo para trabalhar na rival Tupi. A autora, Janete Clair, resolveu, então, matar o personagem e manter o suspense em torno da identidade do assassino.
“Véu de Noiva” foi revolucionária em vários aspectos. Duas personagens, por exemplo, brigaram na Justiça pela guarda de um menino que foi gerado por uma e criado por outra. O diretor da trama, Daniel Filho, chamou um juiz de verdade para montar um júri e apreciar o caso, com toda a liberdade para decidir. As câmaras, então, captaram uma tensão inédita nessas cenas, fruto de uma ideia ousada e criativa.
Além disso, a novela inovou por apresentar uma trilha sonora especialmente composta para seus personagens, produzida por Nelson Motta. O disco contou com composições de Chico Buarque, Caetano Veloso, Roberto Menescal e Antônio Adolfo e vendeu, na largada, 50 000 exemplares (para se ter uma ideia, ganhava o disco de ouro nessa época quem tivesse uma vendagem de 40 000 cópias). Este LP produziu um grande sucesso nacional, a canção “Tele tema”, interpretada por Regininha. A Globo recebeu uma parte do faturamento, mas a maior fatia ficou com a gravadora que bancou o projeto, a Phillips.
Foi então que João Araújo, pai do compositor Cazuza, resolveu propor à Globo que criasse seu próprio selo. Haveria custos de produção, evidentemente, mas o grande naco das vendas ficaria dentro de casa. Araújo, então, modificou ligeiramente a fórmula original, imaginada por Nelson Motta, e passou a privilegiar as trilhas internacionais das novelas, criando sucessos que tocavam na TV e empolgavam o público.
Às vezes, alguma gravadora não queria ceder o fonograma à Som Livre, como foi batizada a empresa. Neste caso, produzia-se uma regravação com um cantor brasileiro disfarçado atrás de um pseudônimo estrangeiro. Nesta onda, cantores hoje reconhecidos gravaram canções em inglês no anonimato, como Jessé (Christie De Burg) e Fábio Júnior (Mark Davis). Outros assumiram seus nomes artísticos e o usam até hoje, como Chrystian (José Pereira da Silva Neto, que fez dupla com seu irmão Ralf) e Michael Sullivan (Ivanilton de Souza Lima, que se tornaria um compositor reconhecido nacionalmente ao trabalhar com Paulo Massadas e formar o duo Sullivan & Massadas).
Quando a música negada era instrumental, não havia tempo quente. A Som Livre juntava vários músicos, que eram lançados sob a nada original alcunha de “Free Sound Orchestra”.
O negócio cresceu tanto que a gravadora passou a ter um cast próprio e chegou a ter estrelas como Rita Lee. Foi uma mina de dinheiro e ultimamente, apesar dos problemas enfrentados pelo mercado fonográfico, era lucrativa e contava com 80 artistas em seu plantel. Mesmo assim, o Grupo Globo colocou a empresa à venda.
Em meio a um difícil processo de adaptação aos novos tempos, a holding da família Marinho precisa dar foco ao que realmente interessa e àquilo que seus profissionais sabem fazer bem: conteúdo jornalístico ou de ficção em português. Um dos movimentos mais ousados neste caminho foi a criação da Globoplay, uma espécie de Netflix tupiniquim, que já conta com 20 milhões de assinantes no Brasil (a título de comparação, a Netflix tem, em território brasileiro, 17 milhões), o que significa um faturamento anual superior a US$ 1 bilhão.
Neste processo, não se pode ficar preso ao passado nem a sentimentalismos – não é à toa, por exemplo, que a emissora não renovou contratos de atores que tinham décadas de casa, como Tarcísio Meira, Gloria Menezes e Maitê Proença. A última baixa foi o jornalista Carlos Henrique Schroder, que já deixara o posto de diretor geral e agora abandona o cargo de principal executivo de produção de conteúdo. Neste redemoinho, sobraram poucos nomes antigos dentro da estrutura. Um deles é o presidente do grupo, Jorge Nóbrega, conhecido por ter, alguns anos atrás, demitido um de seus executivos em uma véspera de Natal. Dentro desse processo, no qual nada é sagrado, a Som Livre acabou virando um elefante branco, perdendo espaço, e deverá ser passada à frente sem dó.
O simbolismo dessas mudanças mostra que os acionistas da Globo resolveram deixar o passado para trás e buscar um modelo de negócios sintonizado com os novos tempos. Trata-se de uma decisão movida a valentia e a denodo, num momento em que uma boa parcela da população rejeita a TV da família Marinho e a trata por “Globolixo” nas redes sociais. Com tantos desafios e forças contrárias, é o caso de mudar ou mudar.
Afinal, o grupo está inserido no mundo empresarial, no qual tudo tem a ver com a capacidade de ser intrépido ou não. Seus horizontes podem se expandir ou diminuir – tudo vai depender do tamanho da coragem dos timoneiros da empreitada. O que acontece com a Globo reflete o que está ocorrendo em vários mercados e em inúmeras empresas: a necessidade imperativa de se transformar ou perecer. Trata-se de um processo tão rápido e violento que muitos executivos ainda estão atarantados, apesar de saber que precisam se movimentar com rapidez. No fundo, todos empresários experimentam neste período radical de transição um sentimento que foi definido por John Pierpont Morgan, há mais de cem anos: “O primeiro passo para se chegar a algum lugar é decidir que você não vai mais ficar parado onde está”.