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A polarização política virou calcificação afetiva

“Biografia do Abismo”, do jornalista Thomas Traumann e do cientista político Felipe Nunes, traça uma radiografia da polarização política no Brasil

"Biografia do Abismo", do jornalista Thomas Traumann e do cientista político Felipe Nunes, traça uma radiografia da polarização política no Brasil (Divulgação)
"Biografia do Abismo", do jornalista Thomas Traumann e do cientista político Felipe Nunes, traça uma radiografia da polarização política no Brasil (Divulgação)

O livro “Biografia do Abismo”, do jornalista Thomas Traumann e do cientista político Felipe Nunes, traça uma radiografia da polarização política no Brasil, citando dados e notícias de arquivo para tentar explicar um fenômeno que divide os brasileiros em função de suas posições ideológicas. O livro, que será lançado em 15 de dezembro, foi comentado por um de seus autores, Nunes (diretor do instituto de pesquisas Quaest), em entrevista publicada ontem pela Folha de S. Paulo.

“Notei que a polarização deixou de ser partidária e política para ser afetiva no processo eleitoral de 2018, marcado por uma ideia antissistema”, disse Nunes. “A palavra ‘polarização’ não dá mais conta para descrever o que vivemos. Por isso, adotamos a palavra ‘calcificação’, que é um processo de enrijecimento dos dois lados”. O diretor da Quaest vai em frente: “Não haveria calcificação das preferências políticas […] se não fossem as redes sociais. […] É um processo que nos coloca dentro de bolhas que confirmam nossos vieses e reforçam nosso hedonismo, nossa vontade de estar certo, de ter razão no debate o tempo todo”.

Não li o livro ainda, mas posso me arriscar a alguns comentários sobre o tema.

Talvez a polarização tenha suas origens em uma espécie de ressentimento silencioso. Com a ditadura militar, a classe média rejeitou o direitismo, por associá-lo ao regime de exceção. Mesmo defensores irrestritos do capitalismo não se definiam como direitistas. Depois da redemocratização, essa tendência se aprofundou e durou até meados da década passada. Para se ter uma ideia, o ex-ministro Delfim Netto, um dos símbolos máximos do governo militar, disse, quando deputado, que era de Centro.

Os direitistas ficaram em silêncio durante muito tempo, mas colecionaram algumas vitórias eleitorais importantes. Em São Paulo, por exemplo, a prefeitura foi ocupada pelo ex-presidente Jânio Quadros (1985) e pelo ex-governador Paulo Maluf (1992). A eleição de Jânio foi uma surpresa, quando todas as pesquisas davam como certa a vitória do então senador Fernando Henrique Cardoso. O deputado janista Gastone Righi explicou, na época, o que acontecera: “O eleitor de Jânio é cristão, moralista e não sai por aí contando em quem vai votar”. Ou seja, pertencia a uma espécie de Direita dentro do armário.

Aqui e ali, no entanto, era possível enxergar que existia um inconformismo em relação ao PT no poder, o que ocorreu de 2003 a 2016. Uma reunião de empresários em 2004, por exemplo, contou com a presença do então ministro da Fazenda, Antonio Palocci, que compareceu ao encontro vestindo uma gravata vermelha. Um empresário do Rio de Janeiro, do setor imobiliário, desabafou em uma rodinha: “Como é que esse cara vem aqui vestindo essa gravata?”.

Ninguém deu muita importância à crítica do interlocutor. Mas, naquela cutucada sem muita lógica havia a semente do ressentimento e do rancor. Esse empresário carioca não era o único a se sentir assim – e a Direita, de maneira geral, foi cultivando silenciosamente a sua cólera.

Até que houve a Operação Lava-Jato e as entranhas da corrupção na Petrobras foram expostas como nunca. O PT não foi o único partido a ter filiados condenados no processo (MDB, PP, PTB e Solidariedade também), mas foi aquele que mais recebeu apupos da sociedade. O petismo virou sinônimo de corrupção e, neste momento, a polarização se instalou. Ou você era contra a Lava-Jato ou não.

Lembro de um jantar, em 2016, em que apontei alguns exageros cometidos pelo então Juiz Sergio Moro. Fui massacrado por quase todos os membros da mesa. Uma das comensais até me perguntou: “Mas você é do PT?”.

Percebi, naquela noite, que a polarização havia se instalado no país. Se alguém tinha críticas à Lava-Jato, só poderia ser petista ou de esquerda. O tempo mostrou, no entanto, que houve desrespeito às garantias legais de vários acusados durante a Operação. Para apontar isso, contudo, não precisaria ser esquerdista.

O sentimento de revolta também explodiu entre a Esquerda quando o atual presidente Luiz Inácio Lula da Silva foi preso. No dia da prisão de Lula, estava monitorando em tempo real o cerco da PF ao petista. Quando ele foi encarcerado, a reação de euforia nas redes foi tão forte quanto à de um gol do Brasil na final da Copa do Mundo.

Na eleição de 2018, tivemos pela primeira vez um forte embate entre Direita e Esquerda (se não consideramos a disputa entre Lula e Fernando Collor de Mello em 1989). Esse confronto se infiltrou em nossa sociedade e continua. Vai continuar? “Viver dessa maneira foi uma escolha coletiva e a solução para reconstruir pontes também terá de ser coletiva”, diz Nunes. “Os dois grupos vão ter de topar o desafio de baixar as armas ao mesmo tempo e tentar viver de maneira menos individualizada.”

Qual a chance de isso acontecer no curto prazo? Zero.