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A era dos especialistas em tudo

Ao mesmo tempo que o Google chegou para dirimir dúvidas e facilitar pesquisas, acabou criando uma nova categoria de seres humanos – os especialistas em tudo

 (Carsten Koall / Correspondente/Getty Images)
(Carsten Koall / Correspondente/Getty Images)
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Money Report – Aluizio Falcão Filho

Publicado em 9 de agosto de 2021 às, 10h00.

Aluizio Falcão Filho

Não me levem a mal. Adoro o Google. Sabe aquele quadro do programa Casseta e Planeta que dizia “seus problemas acabaram”? Pois bem. O surgimento desse buscador resolveu uma parte importante dos apuros de minha vida profissional e inúmeras dúvidas particulares. Quantos votos teve Jair Bolsonaro em Porto Alegre na última eleição presidencial? Está lá. Qual o percentual de vacinados contra a Covid-19 nos Estados Unidos? Idem. Qual o nome do ator principal do filme “Os Melhores Anos de Nossas Vidas”? Demora mais tempo para digitar a busca do que para chegar a resposta. Ah, o nome do ator é Dana Andrews (essa produção, dirigida por William Wyler e ganhadora de sete Oscars, está em meu Top Ten de melhores filmes de todos os tempos).

Ao mesmo tempo que o Google chegou para dirimir dúvidas e facilitar pesquisas, acabou criando uma nova categoria de seres humanos – os especialistas em tudo. Esses indivíduos usam o sistema de buscas com maestria e, com o conteúdo que surge nas páginas de resultados, são capazes de discorrer com desenvoltura sobre qualquer assunto.

Percebo que este sistema é mais acessado em certos momentos de discussão nas redes sociais, que envolvem temas políticos da atualidade. Um exemplo disso é o debate em torno das concentrações populares contra e a favor do governo. Sempre aparecem vários especialistas de ocasião sobre concentração de pessoas para afirmar que na avenida Paulista havia muita ou pouca gente protestando contra o presidente ou que as motociatas de apoio a Jair Bolsonaro tiveram pouca adesão ou entraram para o livro dos recordes.

Mas o Google não é exatamente o dono da verdade. O programa mostra, basicamente, as páginas mais acessadas em relação sobre um determinado assunto. Há invariavelmente resultados nas buscas com conclusões diferentes. E, geralmente, os internautas se fixam naquelas páginas que corroboram seus instintos ou preferências.

Ou seja, quando fazemos uma busca estamos querendo validar uma determinada tese – não necessariamente encontrar uma resposta correta. Nem todos fazem isso, é verdade, mas o viés, muitas vezes, é o maior filtro utilizado para encontrar informações na rede. Neste caso específico, as buscas podem ser refeitas, afinadas e corrigidas até que se crie uma pesquisa que encontre o caminho ideal, com as respostas desejadas. Ou seja, tortura-se o buscador até encontrar o que se procura.

Uma vez de posse das informações desejadas, parte-se para discussões chatíssimas e intermináveis.

Mas esse não é único jeito de se tornar um especialista em todos os assuntos. Há uma outra fonte para isso – as redes sociais, em suas diversas opções. Uma delas é o WhatsApp (e, mais uma vez, vale o mesmo disclaimer do início desse texto: adoro o WhatsApp e esse aplicativo facilitou em muito a minha vida).

Os grupos de WhatsApp são uma grande fonte de dados para os especialistas em tudo. A dinâmica dos grupos é sempre no sentido da depuração, até que sobram aqueles indivíduos que têm a mesma opinião sobre determinados temas. Hoje, participo mais fortemente de dez comunidades digitais. Vejo um respeito razoável pela opinião alheia em apenas três deles (um dos quais, diga-se, é moderado por mim – ou seja, sou suspeitíssimo para dar uma opinião imparcial). Nos demais, vê-se que os discordantes ficam em silêncio, em um voyerismo digital que se assemelha a uma experiência masoquista.

É nesse terreno que os especialistas em todos os assuntos proliferam – os mais obcecados podem inclusive ascender à categoria de “professores de Deus”, tamanho é seu conhecimento aparente e a presunção de seus comentários. Mas, ressalve-se, a maioria das pessoas não é assim. O problema é que o fenômeno se tornou crescente e provavelmente contagioso.

Muitos dos que embarcam nesse comportamento acabam disseminando involuntariamente fake news, pois confiam em suas fontes e, ao mesmo tempo, estão lendo e repassando coisas nas quais acreditam.

É curioso: o Google é plenamente utilizado para se encontrar uma informação desejada. Mas são poucos os usuários da rede que usam essa ferramenta para desmascarar os fakes – como se, no fundo, houvesse uma torcida para que certas mentiras que circulam por aí fossem verdadeiras. Recebo um número considerável de pedidos diários para tirar dúvidas quanto a veracidade de várias postagens em redes sociais. Em alguns casos, sei a resposta de cor, buscando pela memória, já que vários fakes se repetem. Mas, na maioria dos casos, onde encontro a solução? Acessando o Google…

No fundo, os especialistas em tudo, por realizar suas buscas com pré-direcionamento, acabam não acumulando um grande conhecimento e ignoram opiniões ou fatos que enalteçam o que pensam seus oponentes. Dessa forma, o que se cria não é exatamente a sapiência ampla, mas apenas um grande depositário de informações e argumentos que martelam uma nota só.

Este universo de pessoas com a ilusão de grande bagagem cultural, fruto da internet e das redes sociais, foi previsto por uma canção de Bruno Fortunato e Leoni, na voz de Paula Toller, da banda de rock nacional “Kid Abelha” em 1984 (em uma era totalmente analógica): “Conheço quase o mundo inteiro por cartão postal/ Eu sei de quase tudo um pouco e quase tudo mal/ Eu tenho pressa/ E tanta coisa me interessa/ Mas nada tanto assim”.

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