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Miss Marple e a mudança climática

A mudança climática causou a crise hídrica no Brasil? A resposta a esta pergunta não é simples

Crise hídrica afeta rios do Sul e do Sudeste. (Christian Rizzi/Fotoarena)
GG

Gilson Garrett Jr.

Publicado em 16 de outubro de 2021 às 09h14.

A popularidade de Miss Marple, personagem de dezenas de livros e contos de Agatha Christie, rivaliza com a do detetive Hercule Poirot. Ela é uma senhora idosa que vive em St. Martin, um vilarejo inglês, e o roteiro das histórias é sempre o mesmo: Miss Marple vai a uma festinha nos vizinhos ou a uma quermesse na igreja, onde alguém é assassinado. Para irritação da polícia local, ela começa a xeretar o caso, ocorrem mais dois ou três assassinatos e, depois de a polícia prender a pessoa errada, Miss Marple descobre o verdadeiro culpado, a partir de pistas engenhosas que são a marca registrada da Agatha Christie.

Há alguns anos, um grupo de fãs gaiatos mostrou que St. Martin era a capital mundial de homicídios per capita e acusou Miss Marple de ser na verdade uma “serial killer” que forjava evidências de culpa para despistar a polícia (e os leitores). Esta acusação se baseou no cálculo da probabilidade, ou melhor, da improbabilidade, de uma pessoa normal ser testemunha acidental de dezenas e dezenas de assassinatos (o caso de Poirot é diferente, pois é um detetive e os assassinatos chegam a ele).

É interessante observar que o mesmo cálculo de probabilidade que “flagrou” a Miss Marple é usado por cientistas para responder uma pergunta de grande importância real, e que esteve em destaque na mídia nos últimos meses: a mudança climática causou a crise hídrica no Brasil? A resposta a esta pergunta não é simples porque a mudança climática não cria secas bíblicas estilo “José no Egito”, e sim aumenta a probabilidade de ocorrência de eventos severos, mas que já foram observados no passado. Por exemplo, os leitores da Exame certamente sabem que a atual crise hídrica é a pior dos últimos noventa anos. No entanto, creio que poucos se perguntaram se ela é muito pior do que ocorreu no passado. A resposta é surpreendente: a seca atual nas regiões Sudeste e Sul é quase igual à pior do passado (década de 1950).

Em outras palavras, a questão que preocupa o Operador do Sistema (ONS), a agência de planejamento (EPE) e o governo é: um evento que antes era muito improvável - seca severa que ocorre uma vez a cada setenta anos (em média) – passou a ser o “ novo normal ”, ocorrendo por exemplo uma vez a cada sete anos (em média)? Dependendo da resposta, o governo tomará medidas diferentes, por exemplo reforço na capacidade de geração e/ou mudança na maneira de operar os reservatórios.

Como mencionado, o raciocínio “Miss Marple” é usado para responder as perguntas acima. De maneira muito simplificada, os cientistas calculam a probabilidade da explicação mais simples, conhecida como “hipótese nula”, H0. No caso Marple, a H0 seria ela tropeçar em cadáveres puramente por acaso; para a crise hídrica, o H0 seria São Pedro ter “sorteado” uma seca tão severa como a de 1950, sem efeito da mudança climática. Se a probabilidade calculada da H0 for extremamente baixa (por exemplo, 1 em 1000), ela é rejeitada, e a “hipótese alternativa” (H1)  – Miss Marple é uma serial killer; houve efeito da mudança climática – passa a ser considerada a melhor explicação.

Esta análise da contribuição da mudança climáticas nas secas, chuvas, aumentos de temperatura etc. no mundo inteiro é conhecida como “weather attribution”, e é executada por equipes internacionais de cientistas. Uma das equipes mais conhecidas coloca os resultados no site “worldweatherattribution.org”, que recomendamos aos leitores interessados. Por exemplo, a análise da seca severa de 2014-2015 na região Sudeste, disponível no site, conclui que a seca não pode ser atribuída à mudança climática. A atribuição da seca de 2020-2021 ainda não foi feita. Como visto, a atribuição correta é muito importante para a definição mais adequada de medidas para aumento da segurança de suprimento de energia do país.

Este artigo é uma parceria entre a PSR, empresa de energia e tecnologia com atuação em setenta países, e a Exame. A cada quinzena apresentamos outros exemplos da interação cada vez mais complexa entre tecnologia, energia, economia e geopolítica.

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A popularidade de Miss Marple, personagem de dezenas de livros e contos de Agatha Christie, rivaliza com a do detetive Hercule Poirot. Ela é uma senhora idosa que vive em St. Martin, um vilarejo inglês, e o roteiro das histórias é sempre o mesmo: Miss Marple vai a uma festinha nos vizinhos ou a uma quermesse na igreja, onde alguém é assassinado. Para irritação da polícia local, ela começa a xeretar o caso, ocorrem mais dois ou três assassinatos e, depois de a polícia prender a pessoa errada, Miss Marple descobre o verdadeiro culpado, a partir de pistas engenhosas que são a marca registrada da Agatha Christie.

Há alguns anos, um grupo de fãs gaiatos mostrou que St. Martin era a capital mundial de homicídios per capita e acusou Miss Marple de ser na verdade uma “serial killer” que forjava evidências de culpa para despistar a polícia (e os leitores). Esta acusação se baseou no cálculo da probabilidade, ou melhor, da improbabilidade, de uma pessoa normal ser testemunha acidental de dezenas e dezenas de assassinatos (o caso de Poirot é diferente, pois é um detetive e os assassinatos chegam a ele).

É interessante observar que o mesmo cálculo de probabilidade que “flagrou” a Miss Marple é usado por cientistas para responder uma pergunta de grande importância real, e que esteve em destaque na mídia nos últimos meses: a mudança climática causou a crise hídrica no Brasil? A resposta a esta pergunta não é simples porque a mudança climática não cria secas bíblicas estilo “José no Egito”, e sim aumenta a probabilidade de ocorrência de eventos severos, mas que já foram observados no passado. Por exemplo, os leitores da Exame certamente sabem que a atual crise hídrica é a pior dos últimos noventa anos. No entanto, creio que poucos se perguntaram se ela é muito pior do que ocorreu no passado. A resposta é surpreendente: a seca atual nas regiões Sudeste e Sul é quase igual à pior do passado (década de 1950).

Em outras palavras, a questão que preocupa o Operador do Sistema (ONS), a agência de planejamento (EPE) e o governo é: um evento que antes era muito improvável - seca severa que ocorre uma vez a cada setenta anos (em média) – passou a ser o “ novo normal ”, ocorrendo por exemplo uma vez a cada sete anos (em média)? Dependendo da resposta, o governo tomará medidas diferentes, por exemplo reforço na capacidade de geração e/ou mudança na maneira de operar os reservatórios.

Como mencionado, o raciocínio “Miss Marple” é usado para responder as perguntas acima. De maneira muito simplificada, os cientistas calculam a probabilidade da explicação mais simples, conhecida como “hipótese nula”, H0. No caso Marple, a H0 seria ela tropeçar em cadáveres puramente por acaso; para a crise hídrica, o H0 seria São Pedro ter “sorteado” uma seca tão severa como a de 1950, sem efeito da mudança climática. Se a probabilidade calculada da H0 for extremamente baixa (por exemplo, 1 em 1000), ela é rejeitada, e a “hipótese alternativa” (H1)  – Miss Marple é uma serial killer; houve efeito da mudança climática – passa a ser considerada a melhor explicação.

Esta análise da contribuição da mudança climáticas nas secas, chuvas, aumentos de temperatura etc. no mundo inteiro é conhecida como “weather attribution”, e é executada por equipes internacionais de cientistas. Uma das equipes mais conhecidas coloca os resultados no site “worldweatherattribution.org”, que recomendamos aos leitores interessados. Por exemplo, a análise da seca severa de 2014-2015 na região Sudeste, disponível no site, conclui que a seca não pode ser atribuída à mudança climática. A atribuição da seca de 2020-2021 ainda não foi feita. Como visto, a atribuição correta é muito importante para a definição mais adequada de medidas para aumento da segurança de suprimento de energia do país.

Este artigo é uma parceria entre a PSR, empresa de energia e tecnologia com atuação em setenta países, e a Exame. A cada quinzena apresentamos outros exemplos da interação cada vez mais complexa entre tecnologia, energia, economia e geopolítica.

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