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O assassinato bárbaro no Carrefour sob a ótica de uma crise empresarial

Sem desconsiderar a dimensão humana da tragédia, episódios assim também suscitam análise no campo do gerenciamento de crises de reputação na esfera pública

Homem tira foto em frente a faixa de protesto contra a morte de João Alberto Silveira Freitas, morto por espancamento por seguranças em loja do Carrefour em Porto Alegre (Diego Vara/Reuters)
Homem tira foto em frente a faixa de protesto contra a morte de João Alberto Silveira Freitas, morto por espancamento por seguranças em loja do Carrefour em Porto Alegre (Diego Vara/Reuters)
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Mario Rosa

Publicado em 24 de novembro de 2020 às, 08h10.

Tudo já se falou sobre o chocante assassinato de um cidadão nas dependências de uma instalação da rede de varejo Carrefour, em Porto Alegre. Todas as justificáveis e apropriadas manifestações de repúdio ao ocorrido ou de solidariedade a princípios básicos já foram amplamente difundidos e colocados a lume. Sem desconsiderar ou menosprezar a dimensão humana de uma tragédia dessa amplitude e com todo o respeito, episódios assim também suscitam análise no campo do gerenciamento de crises de reputação na esfera pública.

Afinal, para além do episódio, o caso envolve uma marca de presença mundial em diversos mercados. E uma particularidade torna acontecimentos com este contorno específico ainda mais difíceis de manejar, do ponto de vista de gestão: o fato do grupo ostentar mundialmente uma mesma marca. Isso significa que o que acontece em Porto Alegre reverbera na loja situada na França, na Ásia ou em qualquer lugar que ostente seu logotipo com marca homônima.

Nem todos os grupos, apenas para ficar nos de varejo, possuem uma marca mundial predominante. Preferem adotar diferentes nomes locais, sob o guarda chuva de uma holding comum. Como se vê, em situações de crise de imagem, há procedimentos que podem ser traçados preventivamente, inclusive a própria forma de adoção do nome da marca e seu impacto futuro, em caso de exposição negativa perante a opinião pública.

O propósito, aqui, é lembrar que corporações e líderes cada vez mais utilizam um ferramental técnico e teórico conhecido como gestão de crises, criado no âmbito das relações públicas, para oferecer aconselhamento sobre como lidar com situações adversas, como a tragédia de Porto Alegre. A principal premissa da gestão de crises é de que elas tem um padrão. E, se tem um padrão em termos de como começam, evoluem e terminam, é possível planejar antes os seus desdobramentos - e se preparar para elas, quando tudo está calmo.

No caso do Carrefour, vemos um roteiro bastanre disciplinado e cuidadoso de obediência a alguns mantras da gestão de crises: manifestações fortes de indignação ao ato, associação a valores positivos e de ampla aceitação pela sociedade, interrupção imediata do contrato com a empresa terceirizada de segurança e demissão do gerente da loja (nesses dois casos, uma forma de “punição” e ao mesmo tempo de contenção de danos. Afinal, muitos podem também questionar se essa é culpa “isolada”, como a empresa tenta convalidar, ou “sistêmica”, do próprio modelo de gestão da corporação como um todo (o que seria dramático).

O fato é que a empresa agiu rápido e também adotou o modelo “penitencial”: fechou a loja nos dias seguintes ao fato, destinou toda a renda da rede para o combate ao racismo e garantiu todo apoio à família da vítima.

Como se vê, assim que o assassinato se tornou conhecido, do ponto de vista estritamente empresarial e frio, começou uma meticulosa e detalhada gestão de crise do episódio. Pode parecer até desumano (para alguns) observar a dissecação desse tipo de técnica, mas para quem comanda corporações ou carreiras ou para aqueles que apenas tem curiosidade, há uma justificativa moral nesse aparente calculismo dos planos de crise: um episódio trágico, por mais brutal que seja, não pode prejudicar o emprego e a vida de outros milhões de fornecedores e colaboradores da empresa que atuam no mundo todo. Os responsáveis tem de ser punidos, sim, sem duvida, mas toda empresa tem o legítimo dever de buscar preservar ao máximo a sua marca e tudo que ela representa.

PS: Um dos aspectos mais interessantes da condução da crise do Carrefour foi o dueto estabelecido entre o presidente mundial da corporação e o líder da operação brasileira. O líder mundial, livre do peso dos problemas reais de um caso real, com consequências reais financeiras e jurídicas no Brasil, pode externar um conjunto de princípios cativantes, emocionantes, abstratos, inspiradores e “imunizou” a marca perante o mundo. Fez o trabalho dele. Fez o papel de “bonzinho” e até “repreendeu” a operação brasileira.

Já o presidente da operação local, com a carga das responsabilidades reais, foi à televisão, mas adotou um tom mais cuidadoso. Para opinadores que estão de fora, é muito fácil pregar uma “gestão de crises do século 21”. O problema é que as leis, as punições, o aparato jurídico estão aí e não perdoam qualquer deslize. Alem de produzirem dano imediato e aumentarem a dimensão da crise.

Cautela nessas horas nunca é demais. Mas cautela não é o mesmo que paralisia. Saber distinguir entre os dois faz a diferença nessas horas. E até onde a vista alcança, tecnicamente falando, a gestão de crises do Carrefour vem sendo feita com bastante eficiência, apesar de sabermos que situações como essa são sempre muito desgastantes.