Revolução dupla no campo
Transformação digital e biotecnologia trazem o futuro do agronegócio para os dias de hoje
Karina Souza
Publicado em 9 de outubro de 2020 às 21h46.
Última atualização em 8 de janeiro de 2021 às 20h02.
Duas revoluções que ocorrem simultaneamente no campo brasileiro estão levando o nosso já ultraeficiente agronegócio a um patamar extraordinário: a transformação digital e a biotecnologia. Imagine a seguinte situação: uma larva desenvolvida dentro de uma cápsula é colocada precisamente na região de uma plantação em que foi detectada uma praga. O ponto exato foi mapeado pela vigilância constante de satélites e drones. A larva vira uma vespa, um agente biológico natural, que sai da cápsula e devora a praga, salvando a lavoura. Virtualmente, o produtor rural acompanha o passo a passo da operação pela tela de seu tablet.
Não é futurismo. Isso já existe. Na mesma tela em que acompanhou o banquete das vespas, o agricultor passa o dedo para o lado e pode acompanhar a medição de nutrientes de toda a plantação, a correção do solo, o trajeto mais eficiente do maquinário agrícola, que também está ligado à internet, e a recomendação diária de irrigação em cada área, calculada a partir de dados obtidos por imagens de satélite e por sensores espalhados no campo. E acompanha também a produção de energia elétrica que ocorre ali do lado com painéis solares ou biomassa. Isso também já existe.
De repente, uma peça de uma das colhedoras se quebra. Em vez de usar o tablet para fazer o pedido na cidade e ter de encostar a máquina por vários dias até que o artefato chegue, o produtor abre um aplicativo, entra no sistema da colhedora e encontra a peça danificada. Com o indicador e o polegar, ele dá um zoom na danada, gira-a 180 graus e aperta a tecla PRINT. Então uma peça idêntica, novinha em folha, brota da impressora 3-D instalada no antigo celeiro transformado em laboratório biológico e centro de tecnologia. Bem, isso ainda não existe. Mas também não é ficção científica, até porque as impressoras 3-D estão aí. Falta menos do que imaginamos para virar realidade.
O que já existe no campo oferece ao produtor maior eficiência e melhor aproveitamento de combustível, insumos, mão de obra e recursos naturais. Ou seja, traz sustentabilidade, o que é um dos principais atributos da produção agrícola brasileira. A transformação digital e a biotecnologia correm paralelamente com velocidade cada vez maior e se intercalam o todo momento. Os ciclos de testes têm diminuído com o uso de computação e dados. Hoje podemos replicar em software o que acontece numa célula e predizer reações e comportamentos futuros sem a necessidade de esperar a planta brotar e crescer para chegarmos à mesma conclusão por meio da observação.
A internet das coisas (IoT) e a inteligência artificial (IA) têm potencial imensurável no campo. Estimativa do BNDES dá conta de que a utilização de IoT no Brasil deve movimentar US$ 21 bilhões no agronegócio até 2025. Estamos falando de sistemas de telemetria em nuvem que controlam dispositivos embarcados em maquinário agrícola para mineração de dados de rendimento, consumo e percurso. De sistemas semiautônomos que conduzem os trens que levam os grãos até o porto, de onde saem de navio para alimentar o mundo. E estamos falando de centenas de outras inovações com potencial de construir um novo país. Enquanto isso, o nosso produtor rural do início do texto encosta o tablet por alguns minutos e acende o fogão a lenha estiloso, a única peça que sobrou da antiga fazenda. É só um capricho de colecionador. Ao lado há um fogão que funciona com o biometano produzido na propriedade vizinha e pode ser controlado pela assistente virtual no tablet. A lenha já está em brasa e então ele prepara um mate quente, ou um café forte, ou uma sopa de pequi, dependendo da região do Brasil onde ele está.
Corta para o mundo corporativo
A transformação digital, todos nós sentimos isso, foi muito acelerada pelo coronavírus. Ela já era uma tendência irrefutável e virou uma condição de sobrevivência. A digitalização no mundo pós-pandemia não é mais vantagem competitiva. Ela passa a ser o novo motor dos negócios. Mesmo empresas que não possuem base tecnológica precisam se reinventar. Indústrias, por exemplo. Elas precisam rever sua relação com a cadeia logística e encontrar meios mais eficientes de falar com clientes, funcionários, fornecedores, investidores, reguladores e demais públicos. Precisam automatizar processos e trabalhar com dados. E criar hubs de inovação para trazer startups e o mindset delas para dentro da estrutura, para cocriar e testar sem medo.
A transformação digital é um processo essencialmente de cliente no centro. Este é o seu principal atributo. Há outros dois que se juntam e formam um tripé: o uso de dados e a agilidade para levar as inovações rapidamente a teste. Com este tripé, não teremos apenas a digitalização de processos que antes eram analógicos. Teremos, isso sim, o surgimento de outros modelos de negócio, que envolvem também uma mudança profunda na forma de trabalho, com mais autonomia aos times, empreendedorismo e senso de dono.
O maior desafio é descomoditizar o seu produto. Ou seja, encontrar meios de entregar produtos e serviços únicos, acrescidos de uma experiência igualmente única ao cliente. A boa notícia é que tanto a empresa gigante quanto o pequeno negócio atualmente têm recursos para isso. O barateamento da tecnologia é colossal. Compare o preço de 1 Gigabyte em nuvem hoje com o de alguns anos atrás. Ou o preço da capacidade de processamento. Ou o preço dos sensores de internet. Sem falar que a pandemia cristalizou a ideia de que é possível abrir um novo negócio em São Paulo contratando um time formado por um programador na Coréia do Sul, um designer na Califórnia e um relações-públicas em Trancoso. Há, porém, alguns senões a esse, digamos, entusiasmo com as novas possibilidades do pós-Covid. A essência humana é a socialização. Está comprovado que a inovação tem muito mais chance de surgir na conversa informal entre colegas no café do que no isolamento de cada um em sua baia ou mesa. Certamente encontraremos o ponto de equilíbrio.
Tudo isso pode beneficiar também a administração pública. O uso de ferramentas para facilitar processos, acelerar resultados, encurtar distâncias e melhorar a gestão contribuirá muito para o fortalecimento da cidadania. Desde janeiro do ano passado, 918 serviços públicos foram transformados em digitais, segundo a Secretaria Especial de Desburocratização, Gestão e Governo Digital. Isso gerou uma economia de R$ 500 milhões para a administração pública. A meta é chegar a mil serviços até o final do ano. E ainda faltam outros 1.500. A criação de uma identidade digital única para cada cidadão é o principal desafio, mas estamos, segundo a secretaria, próximos disso.
Portanto, a transformação digital tem potencial para mudar a percepção tão presente em nossa sociedade de que o governo é lento. Outro pulo do gato é como criar uma cultura de inovação entre os servidores públicos. Neste sentido, transformação digital não apenas deixará evidente a necessidade de uma reforma administrativa profunda como contribuirá muito para que ela ocorra.
Duas revoluções que ocorrem simultaneamente no campo brasileiro estão levando o nosso já ultraeficiente agronegócio a um patamar extraordinário: a transformação digital e a biotecnologia. Imagine a seguinte situação: uma larva desenvolvida dentro de uma cápsula é colocada precisamente na região de uma plantação em que foi detectada uma praga. O ponto exato foi mapeado pela vigilância constante de satélites e drones. A larva vira uma vespa, um agente biológico natural, que sai da cápsula e devora a praga, salvando a lavoura. Virtualmente, o produtor rural acompanha o passo a passo da operação pela tela de seu tablet.
Não é futurismo. Isso já existe. Na mesma tela em que acompanhou o banquete das vespas, o agricultor passa o dedo para o lado e pode acompanhar a medição de nutrientes de toda a plantação, a correção do solo, o trajeto mais eficiente do maquinário agrícola, que também está ligado à internet, e a recomendação diária de irrigação em cada área, calculada a partir de dados obtidos por imagens de satélite e por sensores espalhados no campo. E acompanha também a produção de energia elétrica que ocorre ali do lado com painéis solares ou biomassa. Isso também já existe.
De repente, uma peça de uma das colhedoras se quebra. Em vez de usar o tablet para fazer o pedido na cidade e ter de encostar a máquina por vários dias até que o artefato chegue, o produtor abre um aplicativo, entra no sistema da colhedora e encontra a peça danificada. Com o indicador e o polegar, ele dá um zoom na danada, gira-a 180 graus e aperta a tecla PRINT. Então uma peça idêntica, novinha em folha, brota da impressora 3-D instalada no antigo celeiro transformado em laboratório biológico e centro de tecnologia. Bem, isso ainda não existe. Mas também não é ficção científica, até porque as impressoras 3-D estão aí. Falta menos do que imaginamos para virar realidade.
O que já existe no campo oferece ao produtor maior eficiência e melhor aproveitamento de combustível, insumos, mão de obra e recursos naturais. Ou seja, traz sustentabilidade, o que é um dos principais atributos da produção agrícola brasileira. A transformação digital e a biotecnologia correm paralelamente com velocidade cada vez maior e se intercalam o todo momento. Os ciclos de testes têm diminuído com o uso de computação e dados. Hoje podemos replicar em software o que acontece numa célula e predizer reações e comportamentos futuros sem a necessidade de esperar a planta brotar e crescer para chegarmos à mesma conclusão por meio da observação.
A internet das coisas (IoT) e a inteligência artificial (IA) têm potencial imensurável no campo. Estimativa do BNDES dá conta de que a utilização de IoT no Brasil deve movimentar US$ 21 bilhões no agronegócio até 2025. Estamos falando de sistemas de telemetria em nuvem que controlam dispositivos embarcados em maquinário agrícola para mineração de dados de rendimento, consumo e percurso. De sistemas semiautônomos que conduzem os trens que levam os grãos até o porto, de onde saem de navio para alimentar o mundo. E estamos falando de centenas de outras inovações com potencial de construir um novo país. Enquanto isso, o nosso produtor rural do início do texto encosta o tablet por alguns minutos e acende o fogão a lenha estiloso, a única peça que sobrou da antiga fazenda. É só um capricho de colecionador. Ao lado há um fogão que funciona com o biometano produzido na propriedade vizinha e pode ser controlado pela assistente virtual no tablet. A lenha já está em brasa e então ele prepara um mate quente, ou um café forte, ou uma sopa de pequi, dependendo da região do Brasil onde ele está.
Corta para o mundo corporativo
A transformação digital, todos nós sentimos isso, foi muito acelerada pelo coronavírus. Ela já era uma tendência irrefutável e virou uma condição de sobrevivência. A digitalização no mundo pós-pandemia não é mais vantagem competitiva. Ela passa a ser o novo motor dos negócios. Mesmo empresas que não possuem base tecnológica precisam se reinventar. Indústrias, por exemplo. Elas precisam rever sua relação com a cadeia logística e encontrar meios mais eficientes de falar com clientes, funcionários, fornecedores, investidores, reguladores e demais públicos. Precisam automatizar processos e trabalhar com dados. E criar hubs de inovação para trazer startups e o mindset delas para dentro da estrutura, para cocriar e testar sem medo.
A transformação digital é um processo essencialmente de cliente no centro. Este é o seu principal atributo. Há outros dois que se juntam e formam um tripé: o uso de dados e a agilidade para levar as inovações rapidamente a teste. Com este tripé, não teremos apenas a digitalização de processos que antes eram analógicos. Teremos, isso sim, o surgimento de outros modelos de negócio, que envolvem também uma mudança profunda na forma de trabalho, com mais autonomia aos times, empreendedorismo e senso de dono.
O maior desafio é descomoditizar o seu produto. Ou seja, encontrar meios de entregar produtos e serviços únicos, acrescidos de uma experiência igualmente única ao cliente. A boa notícia é que tanto a empresa gigante quanto o pequeno negócio atualmente têm recursos para isso. O barateamento da tecnologia é colossal. Compare o preço de 1 Gigabyte em nuvem hoje com o de alguns anos atrás. Ou o preço da capacidade de processamento. Ou o preço dos sensores de internet. Sem falar que a pandemia cristalizou a ideia de que é possível abrir um novo negócio em São Paulo contratando um time formado por um programador na Coréia do Sul, um designer na Califórnia e um relações-públicas em Trancoso. Há, porém, alguns senões a esse, digamos, entusiasmo com as novas possibilidades do pós-Covid. A essência humana é a socialização. Está comprovado que a inovação tem muito mais chance de surgir na conversa informal entre colegas no café do que no isolamento de cada um em sua baia ou mesa. Certamente encontraremos o ponto de equilíbrio.
Tudo isso pode beneficiar também a administração pública. O uso de ferramentas para facilitar processos, acelerar resultados, encurtar distâncias e melhorar a gestão contribuirá muito para o fortalecimento da cidadania. Desde janeiro do ano passado, 918 serviços públicos foram transformados em digitais, segundo a Secretaria Especial de Desburocratização, Gestão e Governo Digital. Isso gerou uma economia de R$ 500 milhões para a administração pública. A meta é chegar a mil serviços até o final do ano. E ainda faltam outros 1.500. A criação de uma identidade digital única para cada cidadão é o principal desafio, mas estamos, segundo a secretaria, próximos disso.
Portanto, a transformação digital tem potencial para mudar a percepção tão presente em nossa sociedade de que o governo é lento. Outro pulo do gato é como criar uma cultura de inovação entre os servidores públicos. Neste sentido, transformação digital não apenas deixará evidente a necessidade de uma reforma administrativa profunda como contribuirá muito para que ela ocorra.