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A crise hídrica e o planejamento energético

Fantasma do apagão volta a assombrar, mas o Brasil tem fontes capazes de compor uma matriz segura e diversificada, além de empresas dispostas a investir

Hidrelétrica de Itumbiara (Ueslei Marcelino/Reuters)
Hidrelétrica de Itumbiara (Ueslei Marcelino/Reuters)
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Luis Henrique Guimarães

Publicado em 16 de junho de 2021 às, 14h15.

Última atualização em 16 de junho de 2021 às, 14h19.

Por Luis Henrique Guimarães *

A crise hídrica que o Brasil enfrenta é a pior em 90 anos, e como era de se esperar já foi aceso o farol amarelo para o risco de apagão e hasteada a bandeira vermelha no seu nível máximo no sistema tarifário, encarecendo a conta de luz e trazendo inflação. A última vez que enfrentamos uma situação semelhante em gravidade foi em 2014, e o país conseguiu superar a encrenca com a geração térmica e elevação das tarifas. Em 2001, por falta de térmicas, tivemos racionamento.

O nível dos reservatórios, atualmente na casa dos 30%, pode chegar a 20% em agosto e abaixo de 10% em novembro. A segurança energética é a mais afetada, mas a crise hídrica espalha outras vítimas. Por exemplo, a logística. A Hidrovia Tietê-Paraná, um dos principais corredores fluviais do país, corre risco de ser paralisada em julho. Em 2014 ficou 16 meses parada.

E a falta de água pode ter efeitos danosos sobre o agronegócio, o setor que mais cresceu no primeiro trimestre de 2021 e que deve liderar a retomada econômica até o próximo ano. A seca já produz certos estragos no campo, e alguns produtores temem que a disputa por água com o setor elétrico prejudique os seus resultados.

O governo montou uma sala de crise para driblar o risco de abastecimento de energia no país. Uma das primeiras medidas foi uma portaria do Ministério de Minas e Energia, no último dia 7 de junho, ampliando a possibilidade de acionamento de usinas termelétricas sem contrato vigente de comercialização de energia. Isso é crucial.

Além de todas as medidas emergenciais, devemos aproveitar o momento para um debate sobre políticas públicas e investimentos privados no setor de energia, que apontem para um futuro seguro e sustentável sob os aspectos ambientais, sociais e econômicos.

Um primeiro passo é não tratar nossa situação atual como algo excepcional. Não é. Crises hidrológicas não são eventos acidentais. Mais de 60% da nossa matriz elétrica é de geração hidrelétrica, e vem chovendo menos no subsistema Sudeste/Centro-Oeste, onde está mais de 50% da carga elétrica. Além disso, o país optou por um modelo de novas hidrelétricas a fio d’água, que fazem sentido do ponto de vista ambiental, mas possuem menor capacidade de geração, transformando-se numa fonte intermitente como o vento e o sol.

Lição número 1: todas as fontes são necessárias. Precisamos buscar um equilíbrio que nos permita erigir uma matriz elétrica bem sustentada por quatro pilares: segurança, resiliência, potência e competitividade.

A boa notícia é que o Brasil possui fontes capazes de compor esta matriz e empresas dispostas a investir. A curto e médio prazos, a geração elétrica com biomassa, por exemplo, pode contribuir muito mais do que já faz. Somente em 2020, a geração do setor sucroenergético poupou 15 pontos percentuais do nível dos reservatórios das hidrelétricas do subsistema Sudeste/Centro-Oeste, de acordo com estudo da UNICA (União da Indústria de Cana-de-Açúcar) e da Cogen (Associação da Indústria da Cogeração de Energia).

São 379 usinas em todo o País. Um levantamento das duas entidades identificou que pelo menos 100 empreendimentos movidos a biomassa poderiam exportar mais energia para o sistema. Essa produção adicional poderia alcançar 3.500 GWh em 2022, gerando o equivalente a uma hidrelétrica de 800 MW de capacidade instalada. Atualmente temos 19 GW instalados de biomassa, montante superior ao da potência instalada da usina de Itaipu (14 GW).

E mais: o pico da produção das usinas acontece exatamente no período mais seco, quando as hidrelétricas não conseguem armazenar água. O que falta? Encontrar os melhores mecanismos regulatórios e jurídicos que permitam a ampliação da biomassa no parque já existente.

O mesmo vale para a geração distribuída solar fotovoltaica, que representa mais de 5,5 GW de potência instalada. Tramita no Congresso um projeto de novo marco regulatório, o PL 5829, que, aperfeiçoado, poderá destravar o mercado em benefício de todos, garantindo segurança jurídica e investimentos.

Outra fonte que teria todas as condições de espantar de vez o risco de racionamento e ainda contribuir para o avanço seguro das renováveis solar e eólica é o gás natural. Mas os investimentos já deveriam estar sendo feitos há muito tempo. Nossa malha de gasodutos de transporte continua com os mesmos 9.500 km que já possuíam em 2009.

Além da segurança energética, o aumento da oferta de gás, nacional ou importado, levaria ainda mais competitividade ao agronegócio brasileiro. A chegada de uma fonte de energia competitiva ao Centro-Oeste brasileiro estimularia a ampliação ou criação de plantas industriais de agropecuária. O gás natural, onde está presente, é um dos principais insumos da indústria de alimentos e de bebidas, dentre outras.

Mais limpo entre todos os combustíveis fósseis, o gás natural também seria útil para abastecer caminhões e equipamentos agrícolas. A criação de corredores logísticos é um caminho para acelerar a interiorização das redes. Em estudo divulgado em 2020, o BNDES sugere fomentar o financiamento, como ocorrido na Europa, de projetos que apresentem soluções de melhoria e ampliação da infraestrutura existente de postos de GNV para veículos pesados no Brasil.

Por fim, e não menos importante, temos o biogás, ainda incipiente, mas com enorme potencial para ser empregado tanto na geração elétrica quanto nas demais utilidades do gás natural. O biogás é o nosso pré-sal caipira. A UTE Bonfim, joint venture entre Raízen e Geo Energética, é uma das maiores plantas de biogás do mundo, com 21 MW de capacidade instalada. Ela já fornece a energia gerada para o Sistema Interligado Nacional. O biogás, seja de resíduos do agronegócio ou do tratamento de lixo urbano, cobrindo todo território nacional, além de contribuir para a segurança e confiabilidade da matriz energética, ainda impede a emissão de CH4 (gás metano), que para o efeito estufa é 25 vezes mais nocivo do que o CO2.

Imagine o que esse modelo de negócio, ao se multiplicar, pode fazer pela segurança energética brasileira. Imagine a adição de energia eficiente, distribuída e resiliente, que poderá resultar de uma ação combinada que leve todos os benefícios do gás para o interior em setores que consomem energia de forma intensiva.

Precisamos imaginar e agir. O Brasil não pode nem deve deixar nas mãos de São Pedro o seu futuro. Todas as fontes de energia devem ser estimuladas e contratadas, de forma equilibrada e competitiva. Não existe energia ruim, o ruim é não ter energia.

* Luis Henrique Guimarães é presidente da Cosan