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Violência sexual, justiça e ideologia

No ano passado, resenhei o livro Against Empathy, de Paul Bloom, que argumenta que o sentimento de empatia, hipervalorizado como ele é hoje em dia, é mais um entrave que uma ajuda à promoção do bem e da justiça no mundo. Ele nos cega à dimensão real dos problemas e os reforça preconceitos de quem […]

VIOLÊNCIA SEXUAL EM ÔNIBUS EM SÃO PAULO: homem ejaculou no pescoço de uma passageira /  (Screenshot/Reprodução)
VIOLÊNCIA SEXUAL EM ÔNIBUS EM SÃO PAULO: homem ejaculou no pescoço de uma passageira / (Screenshot/Reprodução)
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Joel Pinheiro da Fonseca

Publicado em 31 de agosto de 2017 às, 12h27.

No ano passado, resenhei o livro Against Empathy, de Paul Bloom, que argumenta que o sentimento de empatia, hipervalorizado como ele é hoje em dia, é mais um entrave que uma ajuda à promoção do bem e da justiça no mundo. Ele nos cega à dimensão real dos problemas e os reforça preconceitos de quem a exerce. Longe de ser um guia confiável para resolver o sofrimento no mundo, ela, se não colocada sob um direcionamento racional, tende a piorá-los.

Isso é bem ilustrado pela forma como lidamos com a violência sexual contra mulheres hoje em dia. Pessoas bem informadas e inteligentes, que buscam moderação e razoabilidade em seus posicionamentos, abandonam qualquer pretensão de imparcialidade em nome de uma empatia pelas vítimas que não pode jamais ser questionada, sob pena de ser visto como defensor de criminosos.

Esta semana tivemos dois casos chocantes de violência sexual contra mulheres. O primeiro foi o relatado pela escritora Clara Averbuck, que afirma ter sido abusada sexualmente — pela definição legal corrente, estuprada — por um motorista de Uber. Tendo optado por não fazer o boletim de ocorrência em uma delegacia, ela publicou seu relato nas redes sociais e na Revista Claudia. Sensatamente, optou por omitir o nome do motorista, embora ele tenha sido, de qualquer forma, desligado do Uber.

Desde 2009, movido apenas pela empatia para com mulheres que sofreram algum tipo de violência sexual, a definição de “estupro” no Brasil foi alargada para incluir todo e qualquer ato libidinoso não-consensual. Uma carícia não-requisitada é um estupro tanto quanto penetração genital cometida sob ameaça de morte. O desejo de punir basicamente obliterou a utilidade de estatísticas acerca de estupro. Isso é quase como enquadrar soco na cara na mesma categoria que homicídio.

Existem bons motivos pelos quais ela deveria ir à polícia e colocar as rodas do sistema penal para funcionar; mas também é perfeitamente compreensível a decisão de não fazê-lo. O constrangimento, a expectativa de ser desrespeitada, e ainda a previsão de que, depois de tudo isso, provavelmente, a denúncia formal não resultará em condenação. Contudo, a conduta de denunciar o caso nas redes também não parece ser muito produtivo, e gera justamente o tipo de reação emocional precipitada do público.

Não duvido da veracidade do relato de Averbuck. Só me questiono até que ponto esse tipo de reação, que se foca inteiramente na vítima e na experiência dela, é produtivo enquanto forma de lidar com o crime. Graças à postura responsável dela, a empatia popular não se canalizou em linchamento do possível abusador. Ao invés disso, serviu para uma campanha maior contra o Uber e, de forma mais difusa, contra “os homens”. Afinal, diz ela em um vídeo gravado para comentar o caso e sua repercussão, todo homem é um potencial estuprador. No que isso nos ajuda a formular políticas para prevenir novos estupros ou a punir estupradores?

Ela diz, também no vídeo, que “violência sexual é o único crime que quem tem que provar é a vítima”. Isso não é verdade. A presunção de inocência é uma das pedras fundamentais do Direito, sem a qual recaímos com muita facilidade na caça às bruxas. E embora ela ainda valha na Justiça comum, está ausente da justiça das redes. Pelo contrário, levantar a importância de averiguar bem o caso, a necessidade de se ter uma descrição detalhada dos eventos, é visto como uma tentativa de “culpar” a vítima, uma instância de “machismo”. Os mesmos requisitos que ninguém questiona serem importantes para julgar um homicídio são abandonados quando se trata de crimes sexuais, que são sérios mas — poucos discordarão — menos graves do que tirar uma vida.

O segundo caso, mais simples porque feito à luz do dia e com muitas testemunhas, é o do sujeito que ejaculou no pescoço de uma mulher no transporte público. Salvo por pouco do linchamento popular, o acusado foi liberado pela Justiça para aguardar o julgamento em liberdade. Segundo o juiz, seu ato não se enquadra como estupro: “Entendo que não houve constrangimento, tampouco violência ou grave ameaça”. Tudo isso é estritamente verdadeiro, mas para a justiça das redes não importa: ele deveria ser punido da forma mais violenta e exemplar possível. 

Recentemente nos conscientizamos das injustiças e da violência sexual praticada contra mulheres. Isso é positivo e nos ajuda a lidar com um problema perene da humanidade, causado não por uma doutrina machista mas pelo desejo sexual e agressividade masculina. O excesso no lado contrário, contudo, tem levado à uma sanha justiceira que não aceita garantias normais do Direito, tudo em nome de empatia com as vítimas e defesa de uma classe oprimida contra o opressor. Violência sexual é crime e deve ser punida; não é, contudo, essencialmente mais grave do que outros crimes (contra a vida, por exemplo), e deve ser tratada dentro da normalidade da lei.