Um mundo menos razoável
O mundo não é mais o mesmo. A decisão dos britânicos de se separar da UE pegou a todos de surpresa. É muito raro que uma decisão democrática opte pela escolha mais radical, mais arriscada, mais contrária ao status quo. Hoje em dia, contudo, não se pode dizer que seja totalmente inesperado. O impensável se […]
Da Redação
Publicado em 30 de junho de 2016 às 11h56.
Última atualização em 22 de junho de 2017 às 18h14.
O mundo não é mais o mesmo. A decisão dos britânicos de se separar da UE pegou a todos de surpresa. É muito raro que uma decisão democrática opte pela escolha mais radical, mais arriscada, mais contrária ao status quo. Hoje em dia, contudo, não se pode dizer que seja totalmente inesperado. O impensável se tornou inevitável em menos de uma década. E se trata de um evento dentro de um conjunto maior de casos em que a política tem tomado rumos de contestação.
Nos EUA, Trump é – com certeza quase absoluta – o candidato republicano. Sanders, do outro lado, não chegou a colocar Hillary em risco real, mas foi muito melhor do que qualquer um previra. Na França, na Áustria, na Polônia, o sentimento anti-Europa e partidos nacionalistas cresce de maneira preocupante. A Itália tem um governo quase inteiramente formado por jovens com menos de 40 anos. Na Espanha, embora as duas forças de renovação da política – o Podemos e o Ciudadanos – tenham ficado aquém do esperado nas eleições, concentram ainda muito da insatisfação e das esperanças da população que, na hora H, resolveu seguir a lógica do voto útil.
Por aqui, os ventos de mudança se traduzem, em parte, no fim dos governos de inspiração bolivariana, que sofreram perdas duras na Argentina, na Bolívia, no Brasil. O colapso venezuelano não tarda. Chegou a vez de ideias mais liberais pautarem a política desses países que vêm patinando na economia. O medo é que o liberalismo tenha chegado tarde demais. O mundo passou duas décadas reduzindo o protecionismo e expandindo o livre mercado. Quando o Brasil finalmente chega a esta mesma página, Europa e EUA parecem determinados – seja pela direita ou pela esquerda – a se fechar novamente.
Para além dessa mudança de orientação política, há uma crise de representatividade que nos ronda desde 2013 e que não parece nem perto de ser sanada. Nenhum dos partidos ou dos políticos em disputa tem a confiança da população.
Se o desvio se dá à direita ou à esquerda me parece um ponto acidental. A tendência geral é clara: caiu o grau de confiança e de respeito que as pessoas no mundo todo têm pelas instituições estabelecidas e pelo modo normal de se fazer política. De um lado, reivindicações legítimas: a política é lenta, pouco responsiva, corrupta e fechada. Não tem nada a ver com uma geração que demanda serviços sempre mais imediatos, descentralizados, responsivos e em constante adaptação. De outro, talvez a ressaca de uma aposta utópica: mesmo com um certo conforto material (que é a regra entre as classes médias revoltadas na Europa e nos EUA), o status quo político falhou em fornecer uma realização mais profunda; justamente o que mais importa foge à sua alçada.
Em matéria de perder o respeito pelas instituições, o Oriente Médio está anos-luz à nossa frente. Enquanto para nós se rebelar é escolher um candidato fora do padrão, lá os conflitos básicos da sociabilidade humana estão constantemente postos na mesa: matar e ser morto, sem nenhuma consideração por um fictício Estado de Direito, são possibilidades que nenhum dos lados dos conflitos pode se dar ao luxo de recusar. O desejo de mudança, ou a frustração com a falta de melhora – ou seria a mesma coisa? – por lá também tem produzido mudanças profundas.
O ser humano convive bem com situações de privação bastante grandes, desde que sinta que está progredindo, que seu futuro e o futuro de seus filhos será melhor que o passado. Por outro lado, mesmo uma situação plenamente confortável se torna intolerável se a perspectiva é de piora no futuro. E, no mundo todo, grandes contingentes humanos sentem que não estão progredindo.
Que o mundo está num período de crescimento mais lento não é segredo para ninguém. Isso, por si só, já alimenta o sentimento de revolta, de que alguma coisa profunda tem que mudar. O problema é que uma possibilidade mais lúgubre desponta no horizonte: a de que a era do crescimento acabou. Não viveremos novamente um progresso tecnológico com ganhos tão expressivos quanto nos últimos dois séculos. O crescimento baixo, ou ainda o crescimento zero, se tornará a regra. Como ninguém gosta de viver estagnado, as tendências extremistas só aumentarão. Ou então as pessoas aprenderão que a política e a economia não são o mais importante, e uma nova fase da humanidade começará. Até esse dia improvável – e utópico? – chegar, a previsão é de mais descrença e mais tentativas de chacoalhar tudo que aí está.
O mundo não é mais o mesmo. A decisão dos britânicos de se separar da UE pegou a todos de surpresa. É muito raro que uma decisão democrática opte pela escolha mais radical, mais arriscada, mais contrária ao status quo. Hoje em dia, contudo, não se pode dizer que seja totalmente inesperado. O impensável se tornou inevitável em menos de uma década. E se trata de um evento dentro de um conjunto maior de casos em que a política tem tomado rumos de contestação.
Nos EUA, Trump é – com certeza quase absoluta – o candidato republicano. Sanders, do outro lado, não chegou a colocar Hillary em risco real, mas foi muito melhor do que qualquer um previra. Na França, na Áustria, na Polônia, o sentimento anti-Europa e partidos nacionalistas cresce de maneira preocupante. A Itália tem um governo quase inteiramente formado por jovens com menos de 40 anos. Na Espanha, embora as duas forças de renovação da política – o Podemos e o Ciudadanos – tenham ficado aquém do esperado nas eleições, concentram ainda muito da insatisfação e das esperanças da população que, na hora H, resolveu seguir a lógica do voto útil.
Por aqui, os ventos de mudança se traduzem, em parte, no fim dos governos de inspiração bolivariana, que sofreram perdas duras na Argentina, na Bolívia, no Brasil. O colapso venezuelano não tarda. Chegou a vez de ideias mais liberais pautarem a política desses países que vêm patinando na economia. O medo é que o liberalismo tenha chegado tarde demais. O mundo passou duas décadas reduzindo o protecionismo e expandindo o livre mercado. Quando o Brasil finalmente chega a esta mesma página, Europa e EUA parecem determinados – seja pela direita ou pela esquerda – a se fechar novamente.
Para além dessa mudança de orientação política, há uma crise de representatividade que nos ronda desde 2013 e que não parece nem perto de ser sanada. Nenhum dos partidos ou dos políticos em disputa tem a confiança da população.
Se o desvio se dá à direita ou à esquerda me parece um ponto acidental. A tendência geral é clara: caiu o grau de confiança e de respeito que as pessoas no mundo todo têm pelas instituições estabelecidas e pelo modo normal de se fazer política. De um lado, reivindicações legítimas: a política é lenta, pouco responsiva, corrupta e fechada. Não tem nada a ver com uma geração que demanda serviços sempre mais imediatos, descentralizados, responsivos e em constante adaptação. De outro, talvez a ressaca de uma aposta utópica: mesmo com um certo conforto material (que é a regra entre as classes médias revoltadas na Europa e nos EUA), o status quo político falhou em fornecer uma realização mais profunda; justamente o que mais importa foge à sua alçada.
Em matéria de perder o respeito pelas instituições, o Oriente Médio está anos-luz à nossa frente. Enquanto para nós se rebelar é escolher um candidato fora do padrão, lá os conflitos básicos da sociabilidade humana estão constantemente postos na mesa: matar e ser morto, sem nenhuma consideração por um fictício Estado de Direito, são possibilidades que nenhum dos lados dos conflitos pode se dar ao luxo de recusar. O desejo de mudança, ou a frustração com a falta de melhora – ou seria a mesma coisa? – por lá também tem produzido mudanças profundas.
O ser humano convive bem com situações de privação bastante grandes, desde que sinta que está progredindo, que seu futuro e o futuro de seus filhos será melhor que o passado. Por outro lado, mesmo uma situação plenamente confortável se torna intolerável se a perspectiva é de piora no futuro. E, no mundo todo, grandes contingentes humanos sentem que não estão progredindo.
Que o mundo está num período de crescimento mais lento não é segredo para ninguém. Isso, por si só, já alimenta o sentimento de revolta, de que alguma coisa profunda tem que mudar. O problema é que uma possibilidade mais lúgubre desponta no horizonte: a de que a era do crescimento acabou. Não viveremos novamente um progresso tecnológico com ganhos tão expressivos quanto nos últimos dois séculos. O crescimento baixo, ou ainda o crescimento zero, se tornará a regra. Como ninguém gosta de viver estagnado, as tendências extremistas só aumentarão. Ou então as pessoas aprenderão que a política e a economia não são o mais importante, e uma nova fase da humanidade começará. Até esse dia improvável – e utópico? – chegar, a previsão é de mais descrença e mais tentativas de chacoalhar tudo que aí está.