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Somos uma cultura de franco atiradores?

Há algo de estranho numa cultura que tem a arma de fogo como um símbolo de status e aspiração

VELÓRIO EM SUZANO: talvez mais sensato do que pensar em armar as escolas (ou a população em geral), seja tentar identificar as causas sociais e psicológicas desse fenômeno / REUTERS/ Amanda Perobelli (Amanda Perobelli/Reuters)
VELÓRIO EM SUZANO: talvez mais sensato do que pensar em armar as escolas (ou a população em geral), seja tentar identificar as causas sociais e psicológicas desse fenômeno / REUTERS/ Amanda Perobelli (Amanda Perobelli/Reuters)
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Joel Pinheiro da Fonseca

Publicado em 14 de março de 2019 às, 16h33.

Última atualização em 14 de março de 2019 às, 19h03.

Faltam palavras para descrever o horror de uma tragédia como o massacre da Escola Professor Raul Brasil, em Suzano, SP. Perante a dor inimaginável das famílias e amigos das vítimas e dos algozes, resta apenas se solidarizar.

E, no momento seguinte, pensar em como tornar esse tipo de ocorrência menos comum no Brasil. Bem sabemos como nosso país é violento, com mais cinquenta mil homicídios anuais, em larga medida ligados à criminalidade das ruas e ao tráfico de drogas. Dava algum tipo de alento, contudo, pensar que ao menos a violência sem sentido de franco atiradores que matam a esmo num ato final de revolta não era parte de nossa cultura. De uns anos para cá, também este tipo de crime vem se tornando mais comum.

Figuras públicas preeminentes de nossos tempos não hesitaram em apontar o que consideram ser as falhas de nossa sociedade e legislação que teriam permitido a tragédia. O vice-presidente General Mourão levantou o velho lugar-comum dos videogames. Para o Senador Flavio Bolsonaro, o massacre na escola atesta o fracasso do Estatuto do Desarmamento. Para o também Senador Major Olímpio, se a escola tivesse pessoas armadas – talvez os próprios professores – a tragédia teria sido evitada.

Parece-me no mínimo apressada a ideia de armar professores como proteção contra matadores psicóticos. O sujeito armado pode usar sua arma para o bem mas também para o mal. Acidentes acontecem, bem como erros de avaliação da situação e ainda escaladas de conflito passional que podem terminar em violência. Você se sentiria mais seguro se soubesse que os professores da escola do seu filho – ou vigias que passeiam pelos corredores – carregam armas prontas para o disparo?

No mais, embora portassem uma arma de fogo ilegal (logo, a proibição não os impediu de comprar), é fato que carregavam também armas brancas, com menos letalidade. Provavelmente, conseguir mais armas de fogo não era trivial para eles, e por isso carregavam também bestas e arco e flecha. Será que é uma boa ideia facilitar o acesso a armas de fogo? Quantos outros jovens que hoje não têm acesso fácil a armas conseguiriam colocar suas mãos em uma, caso a legislação de posse e porte fosse afrouxada?

Talvez mais sensato do que pensar em armar as escolas (ou a população em geral), seja tentar identificar as causas sociais e psicológicas desse fenômeno, para quem sabe agir sobre elas. Jovens estão se isolando e enlouquecendo. A internet dá ao adolescente que se sente excluído e impotente, e portanto revoltado com o mundo (algo bastante comum), comunidades de jovens como ele que alimentam “valores” e aspirações as mais doentias. É o caso do Dogolachan, forum de discussão com conteúdo voltado aos mais variados discursos de ódio e fantasias de massacres e suicídios.

Para um número crescente de jovens do sexo masculino, o desprezo dos pares e a rejeição pelo sexo feminino leva a uma espiral de ódio e ressentimento perigosa, especialmente quando encontra uma comunidade que incentiva esses sentimentos. Há até uma categoria – pensada nas próprias comunidades online – para descrever esses jovens: incel, ou celibatário involuntário. Sem autoestima no presente e nenhuma aspiração para o futuro, a vingança contra o meio social que os desprezou pode trazer alguma aparência de satisfação.

Não acredito que proibir fóruns de discussão anônimos seja possível ou desejável. Temos que repensar, aí sim, uma cultura crescentemente competitiva, que valoriza o sucesso e relega os “fracassados” ao ostracismo social. A vida não se resume a vencer, e todos merecem respeito e acolhimento.

E repensar também o culto em expansão à violência como resposta aos problemas sociais. Independentemente da posição que a pessoa tenha sobre a legalização de posse e porte de armas de fogo, há algo de estranho numa cultura que tem a arma de fogo como um símbolo de status e aspiração. Em que pessoas tirem foto ostentando orgulhosas suas armas de fogo, e que estas sejam vistas como uma maneira de se afirmar e de resolver conflitos.

O governo Bolsonaro não tem nenhuma responsabilidade sobre a tragédia – e tampouco o decreto que facilitou a posse de armas -, mas é sintomático que um dos atiradores admirasse Bolsonaro, cuja campanha pregou o culto à violência e as armas como resposta ao suposto pacifismo degenerado dos direitos humanos. Ideias e símbolos têm consequências. Na mente de um jovem isolado, ressentido e revoltado, provavelmente com algum desequilíbrio psíquico (afinal, mesmo nos fóruns de discussão mais hediondo, a maioria ali jamais dará o passo final que é matar alguém), essas consequências podem ser brutais.

Sigamos, enquanto sociedade, solidários a toda tragédia. E vamos pensar em como nossa sociedade poderia mudar: não só para capturar e matar mais franco atiradores, mas principalmente para que menos pessoas sigam por esse caminho monstruoso.