Religião e fé em tempos de burkini
Dois fatos dos últimos dias colocaram a nossa relação problemática com a religião em relevo: a faixa da comemoração de Neymar ao conquistar o ouro olímpico, que dizia “100% Jesus” e a muçulmana que, trajando um “burkini” na praia francesa, foi obrigada pela polícia a se despir. O Brasil é um país majoritariamente e profundamente […]
Da Redação
Publicado em 25 de agosto de 2016 às 11h29.
Última atualização em 22 de junho de 2017 às 18h06.
Dois fatos dos últimos dias colocaram a nossa relação problemática com a religião em relevo: a faixa da comemoração de Neymar ao conquistar o ouro olímpico, que dizia “100% Jesus” e a muçulmana que, trajando um “burkini” na praia francesa, foi obrigada pela polícia a se despir.
O Brasil é um país majoritariamente e profundamente religioso. Aqui convivem igrejas cristãs, crenças de origem afro, o espiritismo kardecista e, misturando um pouco de tudo, a umbanda. Para certa intelectualidade brasileira, contudo, a religião só é bonita enquanto traço folclórico e estético. Quando invade a arena das crenças relevantes exigindo consideração de igual para igual, sem condescendência, é intolerável.
A França, ao contrário do Brasil, é o país secularista por natureza. A igreja católica encontra-se em estado terminal, e mesmo o espiritismo – que herdamos dela – morreu sem deixar rastro. Ocorre que essa sociedade laicizada até a alma agora se vê às voltas com o fanatismo islâmico, e não sabe como agir. Seu instinto natural é banir manifestações religiosas da vida pública, mas se a religião vai existir, ela necessariamente irá além da esfera privada.
Assim, em ambos os países, o aparecimento da religião na esfera gera uma forte reação contrária. A religião é, acredita-se, algo que pertence à esfera privada.
Metafisicamente falando, as religiões fazem referência a um plano da existência que está além do mundo físico: o plano dos espíritos e da(s) divindade(s), inacessível à experiência cotidiana dos homens. Desde pelo menos o Iluminismo (mas, de alguma forma, desde a filosofia medieval), há um consenso de que esse tipo de conhecimento está além das pretensões da razão humana – não é avaliável por métodos racionais – e que portanto não pode servir de justificativa para leis e políticas de Estado.
Psicologicamente falando, contudo, a religião é muito similar a diversos outros tipos de crença, como ideologias políticas. É um conjunto de crenças central para a identidade grupal do indivíduo e funciona como uma instância justificadora de seus valores. Tanto a religião tradicional quanto a causa política ou a identidade nacional podem cumprir o mesmo papel de unir pessoas e promover conflitos. E todos terão, por mais que seus defensores o neguem, uma carga de afirmações que fogem ao estritamente racional. Isso não é uma crítica; é provavelmente impossível ao homem viver sem grandes narrativas, sem ter alguma visão de qual é seu lugar no universo ou na História, e isso jamais será obra do puro raciocínio.
A França, ao decretar – inicialmente por meio da violência – o fim da religião católica tradicional, criou uma religião civil republicana e secularista para colocar em seu lugar, e foi relativamente bem-sucedida. Hoje em dia essa religião civil também está em baixa, numa época em que o cidadão francês julga que louvar as virtudes e conquistas de sua nação seja um ato odioso de opressão dos povos menos favorecidos. Mas o Estado francês continua operando sob a lógica do secularismo militante, gerando inconvenientes (mulheres que iriam á praia de burkini deixarão de ir) e, possivelmente, mais hostilidade de populações que não têm nenhum pudor em combater abertamente seus inimigos.
No Brasil, o Estado está confortavelmente misturado a símbolos religiosos (o que em nada viola sua laicidade; nenhuma lei ou política é baseada em supostas revelações sobrenaturais ou nos ditames de igrejas), mas uma pequena elite intelectual vive em total descolamento do resto da sociedade. A distância da religião levou ao medo da religião, à suposição irracional de que todo mundo que acredita em algo a sério é um fanático perigoso. A manifestação do que há de mais importante na vida da pessoa é vista como um ato de violência
De um ponto de vista liberal padrão, a resposta é fácil: ambos os casos – a faixa cristã de Neymar e o burkini islâmico – deveriam ser permitidos. Poder viver de acordo com suas crenças e manifestá-las aos demais é uma conquista da sociedade liberal moderna que, se perdida, deixaria nossa vida muito mais pobre. Não falo apenas do direito legal – que no caso de Neymar nem entra em discussão – mas da disposição da sociedade de estar aberta a diferentes maneiras de encarar o universo e o lugar do homem.
Longe de ser um locus exclusivo de irracionalidade, a religião é uma das maneiras que a fé humana pode se concretizar. Fé que, no final das contas, pode ser o que mantém uma sociedade unida e capaz de se defender contra ameaças externas – sejam físicas ou ideológicas. O medo dela, além de ser, ele próprio, irracional, pode denotar uma fragilidade perigosa para a vida do espírito. Independentemente do que pensam os intelectuais, a religião provavelmente ainda nos acompanhará por um bom tempo; é hora de fazer as pazes com ela e compreendê-la; no mínimo para não ser engolido por ela.
Dois fatos dos últimos dias colocaram a nossa relação problemática com a religião em relevo: a faixa da comemoração de Neymar ao conquistar o ouro olímpico, que dizia “100% Jesus” e a muçulmana que, trajando um “burkini” na praia francesa, foi obrigada pela polícia a se despir.
O Brasil é um país majoritariamente e profundamente religioso. Aqui convivem igrejas cristãs, crenças de origem afro, o espiritismo kardecista e, misturando um pouco de tudo, a umbanda. Para certa intelectualidade brasileira, contudo, a religião só é bonita enquanto traço folclórico e estético. Quando invade a arena das crenças relevantes exigindo consideração de igual para igual, sem condescendência, é intolerável.
A França, ao contrário do Brasil, é o país secularista por natureza. A igreja católica encontra-se em estado terminal, e mesmo o espiritismo – que herdamos dela – morreu sem deixar rastro. Ocorre que essa sociedade laicizada até a alma agora se vê às voltas com o fanatismo islâmico, e não sabe como agir. Seu instinto natural é banir manifestações religiosas da vida pública, mas se a religião vai existir, ela necessariamente irá além da esfera privada.
Assim, em ambos os países, o aparecimento da religião na esfera gera uma forte reação contrária. A religião é, acredita-se, algo que pertence à esfera privada.
Metafisicamente falando, as religiões fazem referência a um plano da existência que está além do mundo físico: o plano dos espíritos e da(s) divindade(s), inacessível à experiência cotidiana dos homens. Desde pelo menos o Iluminismo (mas, de alguma forma, desde a filosofia medieval), há um consenso de que esse tipo de conhecimento está além das pretensões da razão humana – não é avaliável por métodos racionais – e que portanto não pode servir de justificativa para leis e políticas de Estado.
Psicologicamente falando, contudo, a religião é muito similar a diversos outros tipos de crença, como ideologias políticas. É um conjunto de crenças central para a identidade grupal do indivíduo e funciona como uma instância justificadora de seus valores. Tanto a religião tradicional quanto a causa política ou a identidade nacional podem cumprir o mesmo papel de unir pessoas e promover conflitos. E todos terão, por mais que seus defensores o neguem, uma carga de afirmações que fogem ao estritamente racional. Isso não é uma crítica; é provavelmente impossível ao homem viver sem grandes narrativas, sem ter alguma visão de qual é seu lugar no universo ou na História, e isso jamais será obra do puro raciocínio.
A França, ao decretar – inicialmente por meio da violência – o fim da religião católica tradicional, criou uma religião civil republicana e secularista para colocar em seu lugar, e foi relativamente bem-sucedida. Hoje em dia essa religião civil também está em baixa, numa época em que o cidadão francês julga que louvar as virtudes e conquistas de sua nação seja um ato odioso de opressão dos povos menos favorecidos. Mas o Estado francês continua operando sob a lógica do secularismo militante, gerando inconvenientes (mulheres que iriam á praia de burkini deixarão de ir) e, possivelmente, mais hostilidade de populações que não têm nenhum pudor em combater abertamente seus inimigos.
No Brasil, o Estado está confortavelmente misturado a símbolos religiosos (o que em nada viola sua laicidade; nenhuma lei ou política é baseada em supostas revelações sobrenaturais ou nos ditames de igrejas), mas uma pequena elite intelectual vive em total descolamento do resto da sociedade. A distância da religião levou ao medo da religião, à suposição irracional de que todo mundo que acredita em algo a sério é um fanático perigoso. A manifestação do que há de mais importante na vida da pessoa é vista como um ato de violência
De um ponto de vista liberal padrão, a resposta é fácil: ambos os casos – a faixa cristã de Neymar e o burkini islâmico – deveriam ser permitidos. Poder viver de acordo com suas crenças e manifestá-las aos demais é uma conquista da sociedade liberal moderna que, se perdida, deixaria nossa vida muito mais pobre. Não falo apenas do direito legal – que no caso de Neymar nem entra em discussão – mas da disposição da sociedade de estar aberta a diferentes maneiras de encarar o universo e o lugar do homem.
Longe de ser um locus exclusivo de irracionalidade, a religião é uma das maneiras que a fé humana pode se concretizar. Fé que, no final das contas, pode ser o que mantém uma sociedade unida e capaz de se defender contra ameaças externas – sejam físicas ou ideológicas. O medo dela, além de ser, ele próprio, irracional, pode denotar uma fragilidade perigosa para a vida do espírito. Independentemente do que pensam os intelectuais, a religião provavelmente ainda nos acompanhará por um bom tempo; é hora de fazer as pazes com ela e compreendê-la; no mínimo para não ser engolido por ela.