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Quem é “O Culpado”? E isso importa?

Os milhares de dólares de transferência que Trump pode cortar não mudarão nada para os EUA, mas podem ter impacto devastador no trabalho da OMS

OMS: a organização está sendo ameaçada de sanções por parte do governo dos EUA. / REUTERS/Denis Balibouse
DR

Da Redação

Publicado em 16 de abril de 2020 às 14h38.

Numa escolha pouco lógica, Trump resolveu punir a OMS como se fosse a grande responsável pela pandemia do coronavírus. Ainda que ela tenha cometido erros, é justamente dela que vieram os repetidos alertas da importância do isolamento social no combate ao vírus – medida dura mas que vem sendo adotada por todos os governos, mesmo os mais relutantes, pois é a única que realmente reduz a velocidade da expansão. Além disso, as centenas de milhões de dólares de transferência que Trump pode cortar não mudarão nada para os EUA, mas podem ter impacto devastador no trabalho de combate a doenças como malária, ebola, AIDS e outras que a OMS trava em países pobres.

É evidente que a escolha da OMS diz mais a respeito da ideologia nacionalista do governo Trump – que sabota órgãos internacionais como a OTAN, a OMC e agora a OMS – e à necessidade de encontrar um bode expiatório, do que a qualquer julgamento objetivo.

Faria muito mais sentido, por exemplo, identificar no governo chinês a responsabilidade ao menos pelo alastramento inicial do coronavirus. Em primeiro lugar, porque a origem mais provável do vírus está nos mercados de Wuhan, que vendem espécies selvagens (morcegos, pangolins e outros) e não primam pelos padrões sanitários. No passado, a SARS teve origem no mesmo tipo de mercado.

Uma vez infectados os primeiros humanos, o governo regional negou a realidade da epidemia e perseguiu quem tentou alertar o público sobre a ameaça. Em 28 de dezembro, o médico Li Wenliang foi preso pelas autoridades de Wuhan por tentar divulgar informações da epidemia. Ele morreu infectado em 7 de fevereiro.

Dito isso, já em 23 de janeiro, com o lockdown de Wuhan decretado pelo governo central, a China reverteu sua política e passou a tomar medidas enérgicas para conter o vírus, que foram muito bem-sucedidas. Em 3 de abril, o governo central homenageou Li Wenliang como “mártir”. Neste momento, as regras de isolamento em Wuhan já estão sendo gradualmente suspensas.

O problema é que não é possível ter total confiança nos números de mortes e infectos que as autoridades chinesas revelam sobre o país. É um dos males causados pela falta de liberdade de expressão e de imprensa e mais um motivo para se criticar o regime na pandemia.

Seria um enorme exagero, contudo, colocar a culpa do que nós e outros países estamos sofrendo nessa negligência inicial chinesa. Em 10 de março, Bolsonaro dizia que a epidemia era uma fantasia propalada pela mídia. Em 20 de março, chamava a Covid-19 de “gripezinha”. Paulo Guedes, por sua vez, previa em 13 de março que os gastos para combater a epidemia seriam da ordem de “3, 4 ou 5 bilhões de Reais”. No dia 15, estimou que, mesmo com a crise global, a economia global ainda poderia crescer 2,5%.

Sejamos justos: não foi só o governo brasileiro que subestimou o tamanho do perigo e demorou a agir: em praticamente todos os países europeus e nos EUA vimos o mesmo roteiro. O que se conclui disso, contudo, é que não dá para culpar a negligência da China em janeiro pelo estado de negação do governo brasileiro ou americano em março.

Lembremos que em 28 de fevereiro – com a China já a todo o vapor no combate à epidemia – e com casos correndo a Itália, o governo de Milão lançou a campanha “Milano non si ferma” (“Milão não para”). Novamente, é impossível culpar a China por esse grau de irresponsabilidade. O que se conclui disso? A China tem, sem dúvida, grande responsabilidade pelo que aconteceu. Os países ocidentais têm responsabilidade pelo desenrolar da história.

Cabe perguntar: qual a importância de se identificar um culpado? Existe forte na opinião pública o desejo de se extrair algum tipo de reparação da China. Isso seria ruim para o mundo e especialmente para o Brasil: quebrar as pernas de nosso maior parceiro comercial é um contrassenso. Além disso, a história do século 20 bem nos ensinar o resultado de se cobrar, como forma de vingança, pagamentos astronômicos de uma potência em ascensão. Foi esse revanchismo em nome de “acertar as contas” que inclinou a Alemanha, esgotada da Primeira Guerra e com o orçamento devorado pelos vencedores, para a guinada nacionalista com Hitler.

Além de ter sido fortemente impactada pela epidemia, a economia chinesa ainda sofrerá com a recolocação das cadeias globais de valor. Por questões de segurança nacional, nenhum país vai querer ficar dependente de um fornecedor único para insumos de saúde, seja de máscaras ou de remédios. Alternativas à China serão buscadas.

Fora isso, mais relevante do que passar a conta para a China (que, afinal, também não é a única culpada), o que apenas reforçaria o nacionalismo pelo mundo, é fortalecer os mecanismos de cooperação internacional para evitar que novas epidemias assim ocorram. Num mundo globalizado, a doença que surge num mercado público importa não apenas para o país, mas para todos. Sendo assim, será o momento de pressionar a China para ajustar seus padrões sanitários a níveis compatíveis com a economia global.

Além disso, será o momento de fortalecer também a OMS, para que a coordenação global substitua a miopia unilateral que vimos em tantos países que se negaram a agir quando os alertas já eram dados. É olhando para frente, prevenindo problemas futuros, e não acertando contas imaginárias com o passado, que poderemos preservar os ganhos da globalização sem ficar a mercê de novas ameaças.

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É evidente que a escolha da OMS diz mais a respeito da ideologia nacionalista do governo Trump – que sabota órgãos internacionais como a OTAN, a OMC e agora a OMS – e à necessidade de encontrar um bode expiatório, do que a qualquer julgamento objetivo.

Faria muito mais sentido, por exemplo, identificar no governo chinês a responsabilidade ao menos pelo alastramento inicial do coronavirus. Em primeiro lugar, porque a origem mais provável do vírus está nos mercados de Wuhan, que vendem espécies selvagens (morcegos, pangolins e outros) e não primam pelos padrões sanitários. No passado, a SARS teve origem no mesmo tipo de mercado.

Uma vez infectados os primeiros humanos, o governo regional negou a realidade da epidemia e perseguiu quem tentou alertar o público sobre a ameaça. Em 28 de dezembro, o médico Li Wenliang foi preso pelas autoridades de Wuhan por tentar divulgar informações da epidemia. Ele morreu infectado em 7 de fevereiro.

Dito isso, já em 23 de janeiro, com o lockdown de Wuhan decretado pelo governo central, a China reverteu sua política e passou a tomar medidas enérgicas para conter o vírus, que foram muito bem-sucedidas. Em 3 de abril, o governo central homenageou Li Wenliang como “mártir”. Neste momento, as regras de isolamento em Wuhan já estão sendo gradualmente suspensas.

O problema é que não é possível ter total confiança nos números de mortes e infectos que as autoridades chinesas revelam sobre o país. É um dos males causados pela falta de liberdade de expressão e de imprensa e mais um motivo para se criticar o regime na pandemia.

Seria um enorme exagero, contudo, colocar a culpa do que nós e outros países estamos sofrendo nessa negligência inicial chinesa. Em 10 de março, Bolsonaro dizia que a epidemia era uma fantasia propalada pela mídia. Em 20 de março, chamava a Covid-19 de “gripezinha”. Paulo Guedes, por sua vez, previa em 13 de março que os gastos para combater a epidemia seriam da ordem de “3, 4 ou 5 bilhões de Reais”. No dia 15, estimou que, mesmo com a crise global, a economia global ainda poderia crescer 2,5%.

Sejamos justos: não foi só o governo brasileiro que subestimou o tamanho do perigo e demorou a agir: em praticamente todos os países europeus e nos EUA vimos o mesmo roteiro. O que se conclui disso, contudo, é que não dá para culpar a negligência da China em janeiro pelo estado de negação do governo brasileiro ou americano em março.

Lembremos que em 28 de fevereiro – com a China já a todo o vapor no combate à epidemia – e com casos correndo a Itália, o governo de Milão lançou a campanha “Milano non si ferma” (“Milão não para”). Novamente, é impossível culpar a China por esse grau de irresponsabilidade. O que se conclui disso? A China tem, sem dúvida, grande responsabilidade pelo que aconteceu. Os países ocidentais têm responsabilidade pelo desenrolar da história.

Cabe perguntar: qual a importância de se identificar um culpado? Existe forte na opinião pública o desejo de se extrair algum tipo de reparação da China. Isso seria ruim para o mundo e especialmente para o Brasil: quebrar as pernas de nosso maior parceiro comercial é um contrassenso. Além disso, a história do século 20 bem nos ensinar o resultado de se cobrar, como forma de vingança, pagamentos astronômicos de uma potência em ascensão. Foi esse revanchismo em nome de “acertar as contas” que inclinou a Alemanha, esgotada da Primeira Guerra e com o orçamento devorado pelos vencedores, para a guinada nacionalista com Hitler.

Além de ter sido fortemente impactada pela epidemia, a economia chinesa ainda sofrerá com a recolocação das cadeias globais de valor. Por questões de segurança nacional, nenhum país vai querer ficar dependente de um fornecedor único para insumos de saúde, seja de máscaras ou de remédios. Alternativas à China serão buscadas.

Fora isso, mais relevante do que passar a conta para a China (que, afinal, também não é a única culpada), o que apenas reforçaria o nacionalismo pelo mundo, é fortalecer os mecanismos de cooperação internacional para evitar que novas epidemias assim ocorram. Num mundo globalizado, a doença que surge num mercado público importa não apenas para o país, mas para todos. Sendo assim, será o momento de pressionar a China para ajustar seus padrões sanitários a níveis compatíveis com a economia global.

Além disso, será o momento de fortalecer também a OMS, para que a coordenação global substitua a miopia unilateral que vimos em tantos países que se negaram a agir quando os alertas já eram dados. É olhando para frente, prevenindo problemas futuros, e não acertando contas imaginárias com o passado, que poderemos preservar os ganhos da globalização sem ficar a mercê de novas ameaças.

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