Política virou religião
No Brasil, assim como nos EUA, o diálogo é cada vez mais difícil. E a política, portanto, cada vez mais disfuncional e travada
Karina Souza
Publicado em 26 de março de 2021 às 17h31.
Na coluna semanal sobre os EUA da The Economist dessa semana (Lexington, “The God-shaped Hole”, 27/03/21), o colunista observa que, ao mesmo tempo em que a religião organizada está em declínio no país, a política americana vai se assemelhando cada vez mais à religião.
Do lado republicano o processo é mais óbvio: há uma quase identidade entre os auto-declarados evangélicos brancos e o trumpismo. Um terço deles, por exemplo, acredita nas alucinações da teoria da conspiração QAnon (em resumo: a elite do Partido Democrata e da mídia praticam pedofilia e canibalismo). Mas há uma pegadinha aí: é justamente entre os evangélicos menos devotos e piedosos que o apoio fanático a Trump e a seu legado é maior.
Isso faz sentido. Um praticante sincero e devoto de qualquer religião a usará como critério para julgar a realidade. Qualquer ser humano fica aquém, por exemplo, o ideal humano descrito no Sermão da Montanha de Jesus, e portanto qualquer adesão política será relativa e mutável. Já a pessoa que adere a uma religião apenas por motivos culturais ou étnicos (se dizer “cristão” é um jeito de adotar um lado na suposta guerra cultural) não se importa muito com a mensagem espiritual de sua fé. Ela seguirá o que os líderes de sua tribo mandarem, e isso será o sagrado para ela. Assim, não é de se estranhar que a direita americana nunca tenha sido tão aberta e escrachadamente cristã, e jamais tenha sido tão obviamente oposta à visão e aos exemplos de Jesus. Armas, exclusão de imigrantes, guerra, ódio e culto ao sucesso econômico; não é exatamente isso que você encontrará se ler o Novo Testamento…
Na esquerda, o mesmo processo acontece. Aqui a identidade política gosta de se dizer radicalmente secularista e até mesmo ateia, mas o engajamento é distintamente religioso. Essa esquerda secular, hoje identitária, é herdeira do puritanismo militante que, em outros tempos, lutava para proibir o consumo de álcool. Absolutamente intolerante, incapaz de perdoar até as menores falhas e imperfeições, viciada num discurso extremista que acaba por se auto-sabotar. Perseguir supostas ofensas a grupos oprimidos virou mais importante do que criar políticas públicas que realmente ajudem as comunidades. Não é à toa, por exemplo, que as prioridades reais dos negros americanos sejam muito diferentes das prioridades da militância identitária - que conta com muito espaço na mídia - que presume falar por eles.
No Brasil vivemos algo similar. O bolsonarismo é, inegavelmente, uma religião para seus adeptos. Outro dia, no cercadinho de apoiadores que diariamente espera o Presidente passar na frente do Palácio, uma apoiadora disse a Bolsonaro que queria “morrer junto dele”. O próprio presidente parece que ficou assustado com essa linguagem fanática e respondeu, meio sem jeito, que isso não seria necessário. Não há dúvidas, também, que esse movimento político conseguiu capturar grande parte da identidade evangélica em nosso país.
Temos também a esquerda identitária por aqui, mas a que se afirma com mais força eleitoral é uma esquerda messiânica e que repete uma ladainha já batida de que só ela se preocupa com o social, e com esse manto acoberta todo e qualquer crime cometido do seu lado.
Aqui, como lá, o diálogo é cada vez mais difícil. E a política, portanto, cada vez mais disfuncional e travada.
O ímpeto religioso é intolerante, pinta o mundo como uma batalha do bem contra o mal e dado a tratar tudo como inegociável. Quando ele se volta ao sobrenatural, essa batalha se dá sobretudo dentro da alma de cada um. Quando a política se reveste de religiosidade, aí temos um problema social. Porque a política demanda capacidade de trabalhar junto, saber ceder e negociar.
A decadência da religião facilita o seu substituto político. Fortalecer a religiosidade sincera está além das forças de qualquer projeto humano - ela obedece a movimentos culturais mais profundos e, talvez, sem volta. Mas um substituto à altura é um projeto de nação, uma ideia de Brasil que possa nos orgulhar e nos unir para concretizá-la. Em algum momento, essa falta de horizontes, de qualquer visão maior, terá que ser sanada. Ou então continuaremos a nos destruir em profanas guerras santas.
Na coluna semanal sobre os EUA da The Economist dessa semana (Lexington, “The God-shaped Hole”, 27/03/21), o colunista observa que, ao mesmo tempo em que a religião organizada está em declínio no país, a política americana vai se assemelhando cada vez mais à religião.
Do lado republicano o processo é mais óbvio: há uma quase identidade entre os auto-declarados evangélicos brancos e o trumpismo. Um terço deles, por exemplo, acredita nas alucinações da teoria da conspiração QAnon (em resumo: a elite do Partido Democrata e da mídia praticam pedofilia e canibalismo). Mas há uma pegadinha aí: é justamente entre os evangélicos menos devotos e piedosos que o apoio fanático a Trump e a seu legado é maior.
Isso faz sentido. Um praticante sincero e devoto de qualquer religião a usará como critério para julgar a realidade. Qualquer ser humano fica aquém, por exemplo, o ideal humano descrito no Sermão da Montanha de Jesus, e portanto qualquer adesão política será relativa e mutável. Já a pessoa que adere a uma religião apenas por motivos culturais ou étnicos (se dizer “cristão” é um jeito de adotar um lado na suposta guerra cultural) não se importa muito com a mensagem espiritual de sua fé. Ela seguirá o que os líderes de sua tribo mandarem, e isso será o sagrado para ela. Assim, não é de se estranhar que a direita americana nunca tenha sido tão aberta e escrachadamente cristã, e jamais tenha sido tão obviamente oposta à visão e aos exemplos de Jesus. Armas, exclusão de imigrantes, guerra, ódio e culto ao sucesso econômico; não é exatamente isso que você encontrará se ler o Novo Testamento…
Na esquerda, o mesmo processo acontece. Aqui a identidade política gosta de se dizer radicalmente secularista e até mesmo ateia, mas o engajamento é distintamente religioso. Essa esquerda secular, hoje identitária, é herdeira do puritanismo militante que, em outros tempos, lutava para proibir o consumo de álcool. Absolutamente intolerante, incapaz de perdoar até as menores falhas e imperfeições, viciada num discurso extremista que acaba por se auto-sabotar. Perseguir supostas ofensas a grupos oprimidos virou mais importante do que criar políticas públicas que realmente ajudem as comunidades. Não é à toa, por exemplo, que as prioridades reais dos negros americanos sejam muito diferentes das prioridades da militância identitária - que conta com muito espaço na mídia - que presume falar por eles.
No Brasil vivemos algo similar. O bolsonarismo é, inegavelmente, uma religião para seus adeptos. Outro dia, no cercadinho de apoiadores que diariamente espera o Presidente passar na frente do Palácio, uma apoiadora disse a Bolsonaro que queria “morrer junto dele”. O próprio presidente parece que ficou assustado com essa linguagem fanática e respondeu, meio sem jeito, que isso não seria necessário. Não há dúvidas, também, que esse movimento político conseguiu capturar grande parte da identidade evangélica em nosso país.
Temos também a esquerda identitária por aqui, mas a que se afirma com mais força eleitoral é uma esquerda messiânica e que repete uma ladainha já batida de que só ela se preocupa com o social, e com esse manto acoberta todo e qualquer crime cometido do seu lado.
Aqui, como lá, o diálogo é cada vez mais difícil. E a política, portanto, cada vez mais disfuncional e travada.
O ímpeto religioso é intolerante, pinta o mundo como uma batalha do bem contra o mal e dado a tratar tudo como inegociável. Quando ele se volta ao sobrenatural, essa batalha se dá sobretudo dentro da alma de cada um. Quando a política se reveste de religiosidade, aí temos um problema social. Porque a política demanda capacidade de trabalhar junto, saber ceder e negociar.
A decadência da religião facilita o seu substituto político. Fortalecer a religiosidade sincera está além das forças de qualquer projeto humano - ela obedece a movimentos culturais mais profundos e, talvez, sem volta. Mas um substituto à altura é um projeto de nação, uma ideia de Brasil que possa nos orgulhar e nos unir para concretizá-la. Em algum momento, essa falta de horizontes, de qualquer visão maior, terá que ser sanada. Ou então continuaremos a nos destruir em profanas guerras santas.