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Para eleitores polarizados, a mídia está sempre errada

É preciso reconstruir pontes entre o leitor e a mídia profissional. Ele precisa sentir que quem está nas redações não é seu inimigo

ELEITORA DE BOLSONARO: brasileiros não conseguem calibrar suas críticas à realidade do que enfrentam / REUTERS/ Bruno Kelly (REUTERS/ Bruno Kelly/Reuters)
ELEITORA DE BOLSONARO: brasileiros não conseguem calibrar suas críticas à realidade do que enfrentam / REUTERS/ Bruno Kelly (REUTERS/ Bruno Kelly/Reuters)
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Joel Pinheiro da Fonseca

Publicado em 27 de setembro de 2018 às, 14h42.

O caso da matéria da Folha de S. Paulo sobre a acusação de que Jair Bolsonaro teria ameaçado a vida de sua ex-mulher é uma boa ilustração de como o clima polarizado em que vivemos impedem pessoas inteligentes e bem formadas de ler um texto com um mínimo de objetividade e calibrar suas críticas à realidade do que enfrentam.

A matéria da Folha noticiou um fato: surgiu um documento de 2011 da embaixada brasileira na Noruega que relatava que a ex-mulher de Bolsonaro o acusou de tê-la ameaçado. A notícia em nenhum momento afirmava que Bolsonaro acusou sua ex-mulher. Ela reportava a descoberta desse documento e procurava os citados e envolvidos (inclusive Ana Cristina Valle) para darem sua versão.

Indignada, Valle – que é candidata a deputada estadual pelo RJ e usa o nome Bolsonaro – fez um vídeo para “desmentir” a matéria da Folha. Segundo ela, Bolsonaro jamais a ameaçara. Mas a matéria jamais afirmara que ele a tinha ameaçado; afirmou que, segundo o documento do Itamaraty, ela o havia acusado de tê-la ameaçado. O documento existe (não foi forjado pelo jornal), portanto a notícia não é falsa, o jornal não mentiu. O tal “desmentido” não é desmentido coisa nenhuma.

Além disso, ela também diz, hoje, que não fez a acusação contra Bolsonaro em 2011 na Noruega.

As hipóteses para o ocorrido são: 1) Ana Cristina jamais acusou Bolsonaro, ou seja, alguém do Itamaraty inventou a acusação (altamente improvável, mesmo porque em 2011 nem sequer havia qualquer ânimo popular contra ele); 2) Ana Cristina acusou Bolsonaro e agora mente para esconder esse fato.

Desde que a primeira notícia foi veiculada, a Folha já colheu o depoimento de brasileiros que se relacionavam com Ana Cristina na Noruega no período em que ela morou lá, e eles confirmam que ela de fato acusava o ex-marido de ameaçá-la de morte. Se ele de fato fez essa ameaça ou não é outra história.

A matéria, em suma, não mentiu. Isto é, não afirmou algo que é falso. Mas ela, inegavelmente, deu a entender. É o leitor que completa o raciocínio implícito num movimento quase natural: “se a ex-mulher acusou Bolsonaro, então Bolsonaro ameaçou sua ex-mulher de morte”. E levar o leitor a fazer esse salto tem toda a cara de ser feito com motivação política. Talvez nem tenha motivação política: a mídia gosta de provocar o leitor, de permitir insinuações indiretas para gerar mais interesse.

Ao agir assim em um clima tão carregado quanto o que vivemos, os jornais vão perdendo a confiança dos leitores. Nisso, os leitores, levados apenas por uma revolta genérica, ficam incapazes de distinguir entre afirmações falsas (coisa bastante grave, e que a matéria não fez) e um certo viés de cobertura, que é algo muito mais normal e em alguma medida inevitável.

Vivemos no estranho mundo em que correntes de Whatsapp e páginas de campanha política recebem mais confiança dos cidadãos do que jornais que fazem seu trabalho com profissionalismo. O vídeo da candidata Ana Cristina Valle é vergonhosamente equivocado, passional e enganoso. Diz ser um “desmentido”, mas nem sequer consegue entender o que foi afirmado na notícia criticada. Mais do que tudo, é preciso reconstruir pontes entre o leitor e a mídia profissional. Ele precisa sentir que quem está nas redações não é seu inimigo. Enquanto isso não mudar, não importa o quão rigoroso seja o trabalho, ele será sempre acusado de ser mentiroso.