Os méritos e os privilégios de Bettina, a milionária
A mentalidade que tudo explica com base em privilégios leva a um derrotismo invencível
Publicado em 22 de março de 2019 às, 11h30.
Última atualização em 22 de março de 2019 às, 17h02.
Podemos dar de barato que a mensagem do agora famoso comercial da Bettina da Empiricus – que dá a entender que uma jovem aos 19 anos transformou R$ 1.500 em mais de R$ 1 milhão em três anos – é enganosa. Esse tipo de afirmação exagerada é uma estratégia de marketing para atrair no varejo pequenos investidores que não sabem como o mercado financeiro funciona, e que ficarão desejosos das dicas de investimento da Empiricus, para quem sabe se tornarem – eles também – as próximas Bettinas.
Dito isso, eu queria olhar para um outro lado dessa propaganda: as reações hostis que ela provocou nas redes sociais. Em parte, elas foram causadas pelo absurdo da ideia que se vendia: sair de 1500 e chegar a 1 milhão. Do que tenho visto na mídia e no debate público, contudo, ouso supor que qualquer pessoa que venha a público com uma história de sucesso financeiro no Brasil – especialmente se for uma mulher branca – receberá reações desse tipo.
“Só conseguiu esse dinheiro por causa do namorado rico.” “Oi, meu nome é Bettina, tenho 22 anos e foi meu papai que me deu os 1 milhão de reais.” Foram algumas das ironias que a própria Bettina selecionou para fazer um segundo vídeo. Não dá nem para saber direito se os comentários vinham de machistas que duvidam da capacidade da mulher ou de gente da esquerda identitária, que enxerga qualquer conquista como a consequência direta de privilégios. O fato é que poucos no Brasil estão dispostos a reconhecer e aplaudir o sucesso alheio. Ele precisa ser mostrado como mentiroso.
Sem dúvida, a jovem Bettina, eu que escrevo estas linhas e, provavelmente, você que as lê, viemos todos de lares com renda acima da média nacional. Tivemos e temos acesso a oportunidades que faltam a muitos. Mas isso não tira o mérito daquilo que fomos capazes de fazer com nossos esforços, inteligência e talentos. Tenho certeza que pessoas com mais oportunidades que Bettina não foram tão bem-sucedidas quanto ela. Nasceram com mais, mas fizeram menos. O fato de existirem pessoas que nasceram com menos não reduz seu valor.
Na verdade, mesmo o trabalhador brasileiro que, com muita dificuldade, sustenta uma família em alguma comunidade na periferia de uma grande cidade brasileira, se comparado aos miseráveis de alguns outros países – pessoas que passam fome num campo de trabalho da Coreia do Norte, por exemplo – é ele próprio privilegiado. Isso tira o valor desse pai de família, que com muito suor sustenta seus filhos? Nem um pouco.
É verdade: ele teve oportunidades de aprender um ofício e de ser remunerado que o norte-coreano esfomeado não teve. Ser privilegiado com relação a alguém – ou seja, ter mais oportunidades que um outro – não nos diz muito. Mais importante é saber o que a pessoa foi capaz de fazer com as oportunidades que ela tinha. No saldo final, que inclui muito mais do que só dinheiro, ela está em crédito ou em débito com o mundo?
A mentalidade que tudo explica com base em privilégios – e sempre em tom acusador – leva a um derrotismo invencível. Se o privilégio tudo conquista, não há o que o indivíduo menos privilegiado possa fazer. Resta se revoltar contra o mundo e acusar os indivíduos mais bem-sucedidos.
Há uma versão da meritocracia que é evidentemente falsa: a ideia de que, por esforço próprio, um indivíduo que começa por baixo pode chegar ao topo da nossa pirâmide social. Exemplos assim acontecem, mas são excepcionais e têm mais a ver com sorte do que qualquer outra coisa (algum talento extraordinário, por exemplo). Para a maioria das pessoas, isso jamais será uma possibilidade real. Mas é possível, com esforço próprio, melhorar a própria vida, trilhar um caminho virtuoso. Sem essa determinação, nada é possível.
Bettina, eu e você temos privilégios e também temos méritos. Onde um começa e outro termina é impossível de delimitar. O que podemos fazer é, no plano coletivo, propor mudanças na política e nas instituições para que a sociedade seja mais justa e, no individual, valorizar nos outros e em nós o espírito de ir além e de vencer as adversidades, sem o qual não haverá sistema econômico que funcione.