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O que a saga do médico da “peleumonia” diz sobre nossa cultura

Quando o médico Guilherme Capel tirou uma selfie segurando uma folha de prontuário com os dizeres “Não existe peleumonia e nem raôxis!”, sua intenção era partilhar com seus colegas de trabalho, rir de momentos mais engraçados de um dia a dia profissional que deve ser cansativo. Não esperava, de forma alguma, que a comunicação com […]

ENCONTRO: depois da confusão, o médico foi à casa do paciente tirar uma fotografia segurando uma nova folha em que escreveu “Desculpem!” / Reprodução / Facebook
DR

Da Redação

Publicado em 4 de agosto de 2016 às 10h55.

Última atualização em 22 de junho de 2017 às 18h27.

Quando o médico Guilherme Capel tirou uma selfie segurando uma folha de prontuário com os dizeres “Não existe peleumonia e nem raôxis!”, sua intenção era partilhar com seus colegas de trabalho, rir de momentos mais engraçados de um dia a dia profissional que deve ser cansativo. Não esperava, de forma alguma, que a comunicação com amigos e colegas se tornaria pública, expondo-o ao caridoso julgamento das multidões.

Contudo, agora que vivemos online, a distinção entre uma coisa e outra é muito menos fácil. Alguma boa alma, decerto pressentindo que o tipo de “preconceito linguístico” exposto pelo médico não pegaria bem com o grande público, disseminou a foto nas redes, dando início a mais uma já comum (e felizmente curta) temporada de linchamento virtual, notável apenas pela progressão até o desfecho logicamente perfeito. Mas comecemos do começo: será que a brincadeira do médico foi tão terrível e desumana assim?

Muito pelo contrário. Foi fato absolutamente corriqueiro de qualquer profissão que lida com o grande público. Em toda repartição pública, todo escritório, todo hospital, os funcionários se divertem relatando erros, confusões e patetadas das pessoas do outro lado do balcão. Sim, as pessoas se diferenciam de outras por meio da linguagem e outros códigos partilhados com o grupo. Ao ridicularizar, entre os seus, quem é de fora, ele alivia o estresse do dia a dia e fortalece os laços grupais.

Uma mitologia de nossa cultura às vezes coloca o médico em um patamar qualitativamente diferente de outros mortais; mas mitologias à parte, é um profissional como qualquer outro, sujeito também à fadiga e à necessidade de extravasar. O humor é uma forma particularmente inofensiva de fazer isso. Enfim, quem nunca riu do erro de português alheio que atire a primeira pedra.

Dois fatos devem ser ressaltados quanto à brincadeira original do médico: 1) ela não expôs o paciente de maneira alguma — não revelou nome, endereço, nem mesmo sexo. E como a foto foi compartilhada apenas entre seus contatos, não havia expectativa nenhuma de que o paciente ficasse sabendo. Não havia a menor chance, portanto, de que ela servisse para constrangê-lo ou humilhá-lo de qualquer maneira. 2) Rir do que disse um paciente durante a consulta não nos diz absolutamente nada sobre como foi a consulta — se o médico foi ou não atencioso, se prestou atenção ou não no que o paciente lhe relatava com seu vocabulário próprio. E diz menos ainda sobre sua qualidade enquanto médico de maneira geral.

Seu erro foi de julgamento: julgou ser privado o que facilmente se torna público: as conversas por escrito em redes sociais. Em poucas horas sua foto compartilhada com colegas de trabalho virou mais um pecado imperdoável que clama aos céus por vingança. Aquilo não poderia ser um médico, era um monstro insensível e elitista que humilhava os pacientes pobrezinhos que chegavam a ele em seu estado de maior fragilidade. Onde já se viu? Achar graça na fala errada é o primeiro passo para o campo de concentração.

O fato de Capel ser médico tem relevância. Há anos que a classe médica serve como uma espécie de pivô da briga política que divide o Brasil. Os médicos vêm em sua maioria da classe média escolarizada e com forte sentido meritocrático, que tende a ser contrária ao PT. Sendo assim, do ponto de vista do partido que dominou o Brasil por décadas e de seus defensores na cultura, bater nos médicos é bater em seus inimigos. Toda oportunidade de fazer a classe parecer gananciosa, corrupta e arrogante é explorada ao máximo.

Como já dito, era impossível que a brincadeira de fato humilhasse ou constrangesse alguém, pois estava restrita a poucos contatos. Foi o próprio linchamento virtual que, espalhando-a, criou as condições para que ela chegasse a cada vez mais pessoas. Ainda assim, era improvável que o próprio paciente ficasse sabendo, e ainda mais que sua identidade fosse descoberta. Os únicos que poderiam criar essa ligação com o paciente original eram os presentes na consulta.

E foi isso mesmo que aconteceu: o enteado do paciente, que o acompanhara no hospital, ficou sabendo da foto (graças à magnitude da campanha condenatória que ela gerou) e veio a público indignado lamentar o ocorrido. Identificou o padrasto como o alvo original da brincadeira e se declarou muito triste, pois a história provavelmente chegaria até ele; desfecho originalmente impossível que, graças à manifestação pública do próprio enteado, tornou-se inevitável.

Nesse meio tempo, coube ao hospital — essa eterna diluidora de responsabilidades — o papel mais indigno. Alegando elevados critérios éticos, a instituição prontamente desligou o médico e ainda uma enfermeira e uma recepcionista cujo grande crime foi terem rido da foto nos comentários. Teria sido real zelo com exigentes padrões de conduta ou mera tentativa desesperada de controlar danos à imagem da instituição? Não faz diferença. O fato é que, por uma celeuma de dois dias que em um mês estará esquecida, três pessoas perderam seu sustento por um motivo que não diz nada a respeito de sua qualidade profissional.

E eis que o melhor fica para o fim. Parece que o Dr. Guilherme Capel aprendeu a lição. Se a falta de cuidado com sua exposição pública foi o que lhe condenou, um verdadeiro golpe de marketing pode redimi-lo. O médico encontrou o paciente e foi até a casa dele tirar uma fotografia segurando uma nova folha em que escreveu “Desculpem!” – notem o plural: ele pede perdão não ao paciente, mas a seus algozes das redes sociais. Contou também à mídia estar agora trabalhando em uma ONG. Se em seu deboche inicial Capel tomara o cuidado de omitir a identidade do paciente, agora, no momento da boa ação, ele expõe seu rosto a todo o país.

O ciclo está completo. Tornamo-nos uma sociedade que valoriza a imagem idealizada de uma vida perfeitamente dócil, fofa, e que, na ânsia nada fofa de perseguir pequenos deslizes reais ou imaginários, causa males maiores do que os que jura combater. Em que a luta constante por se sobressair como mais virtuoso ou mais vitimado pelas injustiças do mundo, uma forma mais sofisticada de vaidade, é a principal produtora de vítimas. A demissão de três trabalhadores e a exposição do paciente (que no final das contas foi o que lidou com tudo com mais dignidade, mostrando não ser o pobre coitado imaginário que tanto comoveu a patrulha politicamente correta) ocorreram não por causa da piada em si – evento banal – mas da comoção moralista que gerou. No fim, a própria vítima aderiu ao credo de seus perseguidores e colaborou com a engrenagem da destruição. Quem nos salvará de tantas boas intenções?

Para mim, restam apenas duas questões: será que o médico se arrependeu mesmo e aderiu ao código moral do politicamente correto de coração sincero, ou será que está apenas atuando para limpar a própria barra? E qual das duas alternativas será pior?

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Quando o médico Guilherme Capel tirou uma selfie segurando uma folha de prontuário com os dizeres “Não existe peleumonia e nem raôxis!”, sua intenção era partilhar com seus colegas de trabalho, rir de momentos mais engraçados de um dia a dia profissional que deve ser cansativo. Não esperava, de forma alguma, que a comunicação com amigos e colegas se tornaria pública, expondo-o ao caridoso julgamento das multidões.

Contudo, agora que vivemos online, a distinção entre uma coisa e outra é muito menos fácil. Alguma boa alma, decerto pressentindo que o tipo de “preconceito linguístico” exposto pelo médico não pegaria bem com o grande público, disseminou a foto nas redes, dando início a mais uma já comum (e felizmente curta) temporada de linchamento virtual, notável apenas pela progressão até o desfecho logicamente perfeito. Mas comecemos do começo: será que a brincadeira do médico foi tão terrível e desumana assim?

Muito pelo contrário. Foi fato absolutamente corriqueiro de qualquer profissão que lida com o grande público. Em toda repartição pública, todo escritório, todo hospital, os funcionários se divertem relatando erros, confusões e patetadas das pessoas do outro lado do balcão. Sim, as pessoas se diferenciam de outras por meio da linguagem e outros códigos partilhados com o grupo. Ao ridicularizar, entre os seus, quem é de fora, ele alivia o estresse do dia a dia e fortalece os laços grupais.

Uma mitologia de nossa cultura às vezes coloca o médico em um patamar qualitativamente diferente de outros mortais; mas mitologias à parte, é um profissional como qualquer outro, sujeito também à fadiga e à necessidade de extravasar. O humor é uma forma particularmente inofensiva de fazer isso. Enfim, quem nunca riu do erro de português alheio que atire a primeira pedra.

Dois fatos devem ser ressaltados quanto à brincadeira original do médico: 1) ela não expôs o paciente de maneira alguma — não revelou nome, endereço, nem mesmo sexo. E como a foto foi compartilhada apenas entre seus contatos, não havia expectativa nenhuma de que o paciente ficasse sabendo. Não havia a menor chance, portanto, de que ela servisse para constrangê-lo ou humilhá-lo de qualquer maneira. 2) Rir do que disse um paciente durante a consulta não nos diz absolutamente nada sobre como foi a consulta — se o médico foi ou não atencioso, se prestou atenção ou não no que o paciente lhe relatava com seu vocabulário próprio. E diz menos ainda sobre sua qualidade enquanto médico de maneira geral.

Seu erro foi de julgamento: julgou ser privado o que facilmente se torna público: as conversas por escrito em redes sociais. Em poucas horas sua foto compartilhada com colegas de trabalho virou mais um pecado imperdoável que clama aos céus por vingança. Aquilo não poderia ser um médico, era um monstro insensível e elitista que humilhava os pacientes pobrezinhos que chegavam a ele em seu estado de maior fragilidade. Onde já se viu? Achar graça na fala errada é o primeiro passo para o campo de concentração.

O fato de Capel ser médico tem relevância. Há anos que a classe médica serve como uma espécie de pivô da briga política que divide o Brasil. Os médicos vêm em sua maioria da classe média escolarizada e com forte sentido meritocrático, que tende a ser contrária ao PT. Sendo assim, do ponto de vista do partido que dominou o Brasil por décadas e de seus defensores na cultura, bater nos médicos é bater em seus inimigos. Toda oportunidade de fazer a classe parecer gananciosa, corrupta e arrogante é explorada ao máximo.

Como já dito, era impossível que a brincadeira de fato humilhasse ou constrangesse alguém, pois estava restrita a poucos contatos. Foi o próprio linchamento virtual que, espalhando-a, criou as condições para que ela chegasse a cada vez mais pessoas. Ainda assim, era improvável que o próprio paciente ficasse sabendo, e ainda mais que sua identidade fosse descoberta. Os únicos que poderiam criar essa ligação com o paciente original eram os presentes na consulta.

E foi isso mesmo que aconteceu: o enteado do paciente, que o acompanhara no hospital, ficou sabendo da foto (graças à magnitude da campanha condenatória que ela gerou) e veio a público indignado lamentar o ocorrido. Identificou o padrasto como o alvo original da brincadeira e se declarou muito triste, pois a história provavelmente chegaria até ele; desfecho originalmente impossível que, graças à manifestação pública do próprio enteado, tornou-se inevitável.

Nesse meio tempo, coube ao hospital — essa eterna diluidora de responsabilidades — o papel mais indigno. Alegando elevados critérios éticos, a instituição prontamente desligou o médico e ainda uma enfermeira e uma recepcionista cujo grande crime foi terem rido da foto nos comentários. Teria sido real zelo com exigentes padrões de conduta ou mera tentativa desesperada de controlar danos à imagem da instituição? Não faz diferença. O fato é que, por uma celeuma de dois dias que em um mês estará esquecida, três pessoas perderam seu sustento por um motivo que não diz nada a respeito de sua qualidade profissional.

E eis que o melhor fica para o fim. Parece que o Dr. Guilherme Capel aprendeu a lição. Se a falta de cuidado com sua exposição pública foi o que lhe condenou, um verdadeiro golpe de marketing pode redimi-lo. O médico encontrou o paciente e foi até a casa dele tirar uma fotografia segurando uma nova folha em que escreveu “Desculpem!” – notem o plural: ele pede perdão não ao paciente, mas a seus algozes das redes sociais. Contou também à mídia estar agora trabalhando em uma ONG. Se em seu deboche inicial Capel tomara o cuidado de omitir a identidade do paciente, agora, no momento da boa ação, ele expõe seu rosto a todo o país.

O ciclo está completo. Tornamo-nos uma sociedade que valoriza a imagem idealizada de uma vida perfeitamente dócil, fofa, e que, na ânsia nada fofa de perseguir pequenos deslizes reais ou imaginários, causa males maiores do que os que jura combater. Em que a luta constante por se sobressair como mais virtuoso ou mais vitimado pelas injustiças do mundo, uma forma mais sofisticada de vaidade, é a principal produtora de vítimas. A demissão de três trabalhadores e a exposição do paciente (que no final das contas foi o que lidou com tudo com mais dignidade, mostrando não ser o pobre coitado imaginário que tanto comoveu a patrulha politicamente correta) ocorreram não por causa da piada em si – evento banal – mas da comoção moralista que gerou. No fim, a própria vítima aderiu ao credo de seus perseguidores e colaborou com a engrenagem da destruição. Quem nos salvará de tantas boas intenções?

Para mim, restam apenas duas questões: será que o médico se arrependeu mesmo e aderiu ao código moral do politicamente correto de coração sincero, ou será que está apenas atuando para limpar a própria barra? E qual das duas alternativas será pior?

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