O pressuposto oculto da corrida presidencial americana
Assistindo ao debate entre Trump e Hillary na segunda-feira – na minha opinião, vencido solidamente por Hillary –, sai-se com a impressão de que a política americana está fortemente polarizada, dividida em dois campos com valores e ideias completamente diferentes e que não se conversam. A impressão é parcialmente verdadeira. De fato, democratas e republicanos […]
Publicado em 29 de setembro de 2016 às, 11h56.
Última atualização em 22 de junho de 2017 às, 18h27.
Assistindo ao debate entre Trump e Hillary na segunda-feira – na minha opinião, vencido solidamente por Hillary –, sai-se com a impressão de que a política americana está fortemente polarizada, dividida em dois campos com valores e ideias completamente diferentes e que não se conversam. A impressão é parcialmente verdadeira. De fato, democratas e republicanos habitam universos mentais diferentes: cada um com sua própria lista de prioridades, suas preocupações e até mesmo fontes de informação próprias. Contudo, ambos partilham de alguns pressupostos de fundo que, inquestionados, limitam o debate político no país e, de maneira geral, em todo o mundo desenvolvido.
Há diversas questões nas quais as divergências de ambos se dão por mera desigualdade no domínio da informação e dos fatos relevantes. Goste-se ou não de Hillary (eu, particularmente, não gosto), ela é provavelmente a pessoa mais preparada do mundo em diversas áreas que são de interesse direto da presidência; a começar pela política externa. O despreparo e a falta de conhecimento básico de Trump já o desqualificam como um interlocutor à altura num debate sério. Contudo, em outros pontos, a divergência realmente ganha corpo como conjuntos de valores antagônicos.
Trump se vende como o candidato da força e da defesa do autointeresse do povo americano. Enquanto governos passados permitiram a livre entrada de imigrantes e refugiados, que roubam empregos internamente, e a migração de empregos para outras nações, que roubam empregos exportando-os para o outro lado do globo, Trump vai acabar com isso e devolver a prosperidade aos trabalhadores americanos. O interesse deles fala mais alto; não devem mais se curvar às demandas de cada povo que vem exigir algo deles.
Hillary, ao contrário, propõe a compaixão e a união de todos. Basta apenas taxar uma pequena classe de super-ricos para que haja o suficiente para partilhar entre os mais pobres. Também quer uma economia mais fechada, quer perder menos emprego para o resto do mundo, mas o fará de maneira mais equilibrada, menos unilateral. Os imigrantes que entraram devem ser tratados com compaixão. Se Trump coloca o interesse dos americanos como mais importante, Hillary representa uma consideração mais igualitária de todos.
Onde ambos concordam é em aceitar que os interesses dos diversos grupos são antagônicos: o ganho econômico de um país vem à custa de outro. Quando os EUA fazem um acordo de livre comércio com outras nações, sai perdendo, pois sua mão-de-obra de mais cara deixa de ser usada para produzir bens que agora serão importados. Hillary fica forçada a defender um meio-termo pouco consistente. Quer os EUA mais abertos, mas considera que trocas econômicas o desfavorecem. Não quer que os EUA percam empregos para chineses do outro lado do mundo, mas não se preocupa com mexicanos que tiram empregos de americanos dentro das fronteiras do país.
Talvez por isso Trump tenha uma vantagem retórica tão clara. Seu discurso quebra as regras do politicamente correto, da tentativa quase neurótica de sempre incluir a todos e nunca ofender ninguém, e fala as coisas como ele – e muitos americanos – as veem. Nesse contexto, acusá-lo de xenofobia, racismo, machismo ou o que o valha é ineficaz. É justamente por não se curvar a esses rótulos, por defender os americanos sem jamais pedir desculpas, que ele é tão amado.
Eu não tenho dúvidas de que, se eleito, Trump será um dos piores presidentes que os EUA já tiveram. Não por defender os interesses americanos, e sim porque, ao contrário do que sua visão de mundo prega, não existe esse antagonismo de interesses entre os povos. Todos ganham com a globalização, com a imigração e com a livre troca de bens, inclusive os EUA.
Ademais, é ilusório pensar que o país ou a raça tenham um interesse único; diferentes indivíduos aí dentro se beneficiam de arranjos completamente diferentes. A insegurança (real) de parte da classe trabalhadora mais velha se deve a um processo de globalização que tem enriquecido muito o país, e é um custo de transição conforme a economia americana abre mão dos velhos empregos industriais e pouco qualificados e migra para serviços e ideias. Essa transição tem custos, e uma política pública inteligente buscaria reduzir esses custos, e não barrar o processo.
A proposta mais aberta e unificadora de Hillary, que busca integrar ao invés de expulsar, é a melhor; mas não por um suposto dever moral de sacrificar os interesses de seu próprio povo em favor dos pobrezinhos oprimidos de outros países, e sim porque os interesses de todos os povos, na medida em que estabelecem relações de mercado, caminham juntos. O que falta na campanha deste ano são justamente os valores que fizeram dos EUA o que eles são hoje: individualismo e liberdade.