O politicamente correto gera sua própria destruição
Foi uma reversão da fortuna nada imprevisível. O documentário “O Jardim das Aflições”, dirigido pelo pernambucano Josias Teófilo, que recebera protesto e boicote de outros cineastas no festival Cine PE, terminou por vencer três prêmios do festival: o de melhor filme, melhor montagem e ainda do júri popular. De quebra, foi a única sessão que […]
Publicado em 4 de julho de 2017 às, 19h39.
Foi uma reversão da fortuna nada imprevisível. O documentário “O Jardim das Aflições”, dirigido pelo pernambucano Josias Teófilo, que recebera protesto e boicote de outros cineastas no festival Cine PE, terminou por vencer três prêmios do festival: o de melhor filme, melhor montagem e ainda do júri popular. De quebra, foi a única sessão que lotou.
É a tendência na Europa, nos EUA e agora também no Brasil: grupos de esquerda dão uma mostra intransigente de sua própria superioridade moral, creem que venceram de forma acachapante no nível do discurso, mas daí vem a realidade numa reação “conservadora” ainda mais forte. Para usar as gírias do momento: toda “lacração” gera uma “mitada” em sentido contrário e intensidade ainda maior. [nota para os felizardos que não vivem nas redes sociais: “lacrar” é uma resposta que supostamente fecha um debate, humilhando o outro lado. Gíria usada pela esquerda. O equivalente, na direita, é “mitar”.]
A estratégia normal para combater discursos considerados maus era silenciá-los por meio da intimidação. Abaixo-assinados, pressão social, acusações. A atitude básica era “tudo do que eu discordo é fascismo.” O outro lado disso é a corrida armamentista da sinalização da própria virtude: cada um tenta se mostrar mais virtuoso que os demais (mais altruísta, mais preocupado com causas sociais e globais, menos preconceituoso, mais desconstruído, etc.). Ao mesmo tempo, as ofensas discursivas foram crescendo: como ser vítima dá pontos nessa hierarquia social, cada vez mais pessoas encontram motivos cada vez menores para ofenderem profundamente.
O cúmulo disso é a notícia de que editoras estão, agora, contratando “leitores sensíveis” para sinalizar passagens potencialmente ofensivas de novos lançamentos, que serão devidamente corrigidas ou suprimidas. Afinal de contas, nada é mais importante do que proteger os egos delicadíssimos dos millennials…
Em faculdades americanas, obras clássicas da literatura e mesmo da filosofia têm que vir com “trigger warnings”, avisos nas primeiras páginas de que ali há conteúdo potencialmente ofensivo. Até as páginas áridas da “Crítica da Razão Pura” de Kant – um marco da filosofia, escrito no século 18 – vêm com o aviso em algumas edições.
O primeiro efeito disso tudo é a perda de vitalidade da cultura. Desnecessário dizer que, se houvesse leitores sensíveis em séculos passados, não teríamos Shakespeare, Camões, Gregório de Matos ou qualquer outra literatura digna do nome.
Quando a censura é imposta de fora, há aqueles autores capazes de burlá-la, e isso salva a cultura. Quando ela vem de dentro, quando é um impulso autocastrador dos próprios escritores e produtores de cultura, não tem jeito. Ficaremos a depender mesmo de autores “imorais” que se neguem a abraçar essa ortodoxia com fé sincera, rejeitando-a abertamente ou subvertendo-a com inteligência.
Felizmente, a atitude cansa. Todo mundo que não participa dessa elite cultural começa a se ressentir do discurso cada vez mais policiado, do controle social que se estende até sobre os sentimentos e pensamentos de cada um. E hoje, com as redes sociais, essas pessoas podem se conhecer e trocar figurinhas. Surpresa: são muito mais numerosos que a pequena elite cultural que impõe a ortodoxia politicamente correta, que bate o pé quando é contrariada, que faz bico e sai de festival.
E se a esquerda é ruim, a direita que vem aí como resposta cultural a ela é deplorável. Sim, há machismo e racismo de verdade (não só nas definições rarefeitas do discurso atual, em que tudo é machismo ou racismo), e mais do que isso, boçalidade para dar e vender. Não têm a polidez, a respeitabilidade, de uma esquerda que se acostumou a ocupar as mais altas esferas do discurso nacional por décadas. Mas se a reação a essa direita obscurantista for o escândalo e a pose de superioridade moral, a derrota já está selada.
O Brasil tem como sair melhor do que entrou dessa fase “polarizada”. Para isso, temos de dar o exemplo: deixar de lado os pressupostos morais, o espírito de panela e a vaidade intelectual, e participar do debate público não para marcar ponto, mas para, guiando-o, levar-nos a um destino mais razoável.