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O Islã não é nosso inimigo

Ler a notícia de que jihadistas degolaram um padre de 86 anos em uma igreja pacata na França é o bastante para fazer surgir o cruzado no peito dos mais ateus e secularistas entre nós. A repetição quase diária de atos de microterrorismo na Europa torna muito difícil não ceder à narrativa nós vs eles […]

SÍRIA: nosso inimigo não é o islã. É um discurso de violência islâmica,  / Muhammad Hamed / Reuters
SÍRIA: nosso inimigo não é o islã. É um discurso de violência islâmica, / Muhammad Hamed / Reuters
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Joel Pinheiro da Fonseca

Publicado em 29 de julho de 2016 às, 11h10.

Última atualização em 22 de junho de 2017 às, 18h33.

Ler a notícia de que jihadistas degolaram um padre de 86 anos em uma igreja pacata na França é o bastante para fazer surgir o cruzado no peito dos mais ateus e secularistas entre nós. A repetição quase diária de atos de microterrorismo na Europa torna muito difícil não ceder à narrativa nós vs eles e desejar, assim, uma reação dura e exemplar do poderio ocidental.

Só temos que escolher o alvo correto. Nosso inimigo não é o islã. É um discurso de violência islâmica, que recebe a adesão de uma ínfima minoria, além de servir como justificativa para jovens muçulmanos não-praticantes que, por algum distúrbio mental, resolvem descontar no que eles vêm como uma população europeia inimiga.

Sem dúvida, o Estado Islâmico representa um inimigo concreto e visível, que as forças ocidentais poderiam combater com mais presença, tirado o protagonismo russo e sírio, que no longo prazo pode ser ainda mais perigoso para a paz mundial. O uso de força bélica deve ser sempre o último recurso, mas parece difícil negar que a retirada maciça da presença americana no Oriente Médio promovida por Obama, explorada por ditadores astutos como Assad, deu origem ao câncer geopolítico que é o pretenso califado do ISIS, uma aberração sunita tão macabra que faz o fanatismo xiita da revolução iraniana parecer um aliado promissor.

O fato é que no combate a esse Estado terrorista, forças islâmicas sunitas mais moderadas serão aliados necessários, tanto no chão como no combate ideológico, mostrando que há maneiras melhores de se ser muçulmano.

O poder de atração do ISIS depende de sua capacidade de projetar força para os muçulmanos frustrados do mundo inteiro. Enquanto o ISIS estiver lá, botando o terror nos corações ocidentais, eles têm uma esperança de dar sua desforra à Europa malvada e decadente. Um ISIS em franca derrocada, e de preferência ridicularizado ao invés de temido, não pode ser um verdadeiro califado, e não comandaria a adesão de jovem muçulmano nenhum.

Não parece, contudo, que eliminar o ISIS resolverá o problema do terrorismo islâmico. A começar porque, para muitos dos casos recentes, a relação com o jihadismo formal é puramente imaginária e criada no ato pelo próprio terrorista. Tanto o atirador de Orlando quanto o atropelador de Nice não tinham ligação nenhuma com o ISIS. E agora que o terrorismo autônomo já existe como possibilidade cultural, não é difícil pensar que, uma vez destruído o Estado Islâmico, outras entidades possam tomar seu lugar na mente de novos terroristas do it yourself.

Quanto mais hostilizemos o islã enquanto tal, todos os seus adeptos, mais profundo se tornará o problema. Tudo que a ideologia violenta do ISIS quer é solidificar a percepção de que ser muçulmano é incompatível com a vida pacífica no Ocidente moderno. Tendo que escolher, a maioria abraçaria o ódio ao Ocidente. O trabalho do Ocidente é mostrar que essa escolha é falsa. A real escolha é entre ser um adulto maduro, que vive serenamente a própria fé em um mundo que nem sempre concorda com ela, ou deixar-se levar pelo discurso de fracassados que destroem a si mesmos sem alcançar nenhum objetivo. Versões positivas do islã são portanto nossos aliados preferenciais, e pagaremos um alto custo humano se fizermos inimigos de todas elas.

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