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O general Mourão e nosso complexo de inferioridade

Não só o general Mourão, mas grande parte da cultura letrada no Brasil deveria parar de se envergonhar do Brasil

BRASIL: país ainda possui o sentimento de vergonha por sua origem | Valter Campanato/Agência Brasil /
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Da Redação

Publicado em 9 de agosto de 2018 às 12h05.

Mal foi escolhido como candidato a vice-presidente na chapa de Jair Bolsonaro, o General Mourão já causou controvérsia com uma frase que, no mínimo, caiu mal. Na segunda-feira, ele disse numa entrevista que os ibéricos nos legaram a cultura do privilégio, os indígenas a indolência e os africanos a malandragem. Vale a pena analisar o caso tanto pela celeuma artificial que a mídia construiu em cima dele quanto pela questão relevante que ele traz à tona.

Se fôssemos acreditar nas manchetes dos principais veículos de mídia, Mourão teria sido racista ao indicar, no Brasil, a cultura indígena e a cultura africana como fontes da indolência e da malandragem. As manchetes simplesmente omitiram que ele se referiu também aos portugueses. Ou seja, ele não estava rebaixando índios e africanos em oposição ao europeu, o bom, e sim falando algo sobre as três matrizes principais da formação brasileira, inclusive os brancos colonizadores. Isso muda tudo.

Além disso, ao falar dos índios, o próprio Mourão se colocou como um índio, e se referiu à ascendência indígena (do Amazonas) de seu pai. Ou seja, não era um branco falando mal dos não-brancos, e sim um indígena mestiço (que se reconhece assim) falando do Brasil. Nada disso é particularmente difícil de se depreender da fala do general, mas nossa mídia está tão obcecada por acusações sensacionalistas de racismo (e, em outros casos, de machismo), que os jornalistas não resistem à tentação de buscar uns cliques espúrios fabricando – por meio da omissão – um sentido inexistente na fala original.

Feito esse ponto, cabe fazer alguns comentários sobre a fala de Mourão. Em primeiro lugar, indicando que se trata de uma reprodução pouco alterada de uma frase do célebre economista Roberto Campos. E o que está por trás dessa frase de Roberto Campos? Um sentimento de inferioridade brasileiro, tão comum a diversos perfis ideológicos, inclusive (e às vezes especialmente) os liberais. Ela reflete o sentimento de pesar de muitos que olham para este país verde-amarelo e lamentam por ele não ser mais parecido com o grande ideal de humanidade: os Estados Unidos.

Não fomos colonizados por colonos trabalhadores, dotados da ética protestante, que fundaram uma nação capitalista com competição, meritocracia, imparcialidade e amor ao trabalho. Somos, ao contrário, o país do catolicismo, do personalismo, do patrimonialismo, do jeitinho e, por isso tudo, da pobreza e da corrupção. “Se ao menos os holandeses tivessem levado a melhor no Nordeste…”

Penso que esse complexo de inferioridade nos faz muito mal. De fato, nossa cultura não é, nem nunca será, igual à americana ou a do norte da Europa. Portugueses, índios e africanos trouxeram elementos muito diferentes que produziram em nós uma nova civilização. E algumas de suas características talvez guardem mais potencialidades para os desafios do século 21 do que a cultura americana que tão bem soube dominar o século 20.

Num mundo de divisões e polarização crescente, o Brasil ensina a conciliação e a mistura dos diferentes: miscigenação racial e sincretismo cultural. Aqui vemos os laços pessoais falando mais alto do que a ideologia, a religião, a raça, o líder ou o coletivo; e todos buscam fomentar bons laços pessoais. O trabalho não é encarado como fim em si mesmo, e por isso mesmo não se cultiva o ascetismo, e se tem mais espaço para os bens da convivência e do prazer. Num mundo que ameaça afogar toda a individualidade na padronização, temos a espontaneidade e o jeitinho, a capacidade de agir criativamente ainda que o meio não seja o mais propício.

Por fim, enquanto o mundo se divide entre os apóstolos do auto-sacrifício altruísta e o coletivismo nacionalista, o Brasil com a malandragem ainda representa a primazia do individual e de seus afetos sobre as regras impessoais, hierarquias e identidades tribais; o pequeno empreendedorismo aparece aí como a principal modalidade econômica de nossa cultura. Tudo isso, sem dúvida, nos traz desafios; mas muito disso pode ser justamente o que o mundo precisa para não mergulhar no abismo.

Todo brasileiro se orgulha do patrimônio físico e ambiental de nosso país. O patrimônio humano e cultural não é menos rico. E se soubermos valorizá-lo e promover o meio institucional propício para que ele floresça, podemos melhorar ainda mais e ocupar uma posição aos olhos do mundo que faça jus à nossa grandeza. Mas para isso, o primeiro passo é parar de se envergonhar dela. Não só o general Mourão, como grande parte da cultura letrada no Brasil, faria bem em rever suas ideias pré-concebidas.

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Mal foi escolhido como candidato a vice-presidente na chapa de Jair Bolsonaro, o General Mourão já causou controvérsia com uma frase que, no mínimo, caiu mal. Na segunda-feira, ele disse numa entrevista que os ibéricos nos legaram a cultura do privilégio, os indígenas a indolência e os africanos a malandragem. Vale a pena analisar o caso tanto pela celeuma artificial que a mídia construiu em cima dele quanto pela questão relevante que ele traz à tona.

Se fôssemos acreditar nas manchetes dos principais veículos de mídia, Mourão teria sido racista ao indicar, no Brasil, a cultura indígena e a cultura africana como fontes da indolência e da malandragem. As manchetes simplesmente omitiram que ele se referiu também aos portugueses. Ou seja, ele não estava rebaixando índios e africanos em oposição ao europeu, o bom, e sim falando algo sobre as três matrizes principais da formação brasileira, inclusive os brancos colonizadores. Isso muda tudo.

Além disso, ao falar dos índios, o próprio Mourão se colocou como um índio, e se referiu à ascendência indígena (do Amazonas) de seu pai. Ou seja, não era um branco falando mal dos não-brancos, e sim um indígena mestiço (que se reconhece assim) falando do Brasil. Nada disso é particularmente difícil de se depreender da fala do general, mas nossa mídia está tão obcecada por acusações sensacionalistas de racismo (e, em outros casos, de machismo), que os jornalistas não resistem à tentação de buscar uns cliques espúrios fabricando – por meio da omissão – um sentido inexistente na fala original.

Feito esse ponto, cabe fazer alguns comentários sobre a fala de Mourão. Em primeiro lugar, indicando que se trata de uma reprodução pouco alterada de uma frase do célebre economista Roberto Campos. E o que está por trás dessa frase de Roberto Campos? Um sentimento de inferioridade brasileiro, tão comum a diversos perfis ideológicos, inclusive (e às vezes especialmente) os liberais. Ela reflete o sentimento de pesar de muitos que olham para este país verde-amarelo e lamentam por ele não ser mais parecido com o grande ideal de humanidade: os Estados Unidos.

Não fomos colonizados por colonos trabalhadores, dotados da ética protestante, que fundaram uma nação capitalista com competição, meritocracia, imparcialidade e amor ao trabalho. Somos, ao contrário, o país do catolicismo, do personalismo, do patrimonialismo, do jeitinho e, por isso tudo, da pobreza e da corrupção. “Se ao menos os holandeses tivessem levado a melhor no Nordeste…”

Penso que esse complexo de inferioridade nos faz muito mal. De fato, nossa cultura não é, nem nunca será, igual à americana ou a do norte da Europa. Portugueses, índios e africanos trouxeram elementos muito diferentes que produziram em nós uma nova civilização. E algumas de suas características talvez guardem mais potencialidades para os desafios do século 21 do que a cultura americana que tão bem soube dominar o século 20.

Num mundo de divisões e polarização crescente, o Brasil ensina a conciliação e a mistura dos diferentes: miscigenação racial e sincretismo cultural. Aqui vemos os laços pessoais falando mais alto do que a ideologia, a religião, a raça, o líder ou o coletivo; e todos buscam fomentar bons laços pessoais. O trabalho não é encarado como fim em si mesmo, e por isso mesmo não se cultiva o ascetismo, e se tem mais espaço para os bens da convivência e do prazer. Num mundo que ameaça afogar toda a individualidade na padronização, temos a espontaneidade e o jeitinho, a capacidade de agir criativamente ainda que o meio não seja o mais propício.

Por fim, enquanto o mundo se divide entre os apóstolos do auto-sacrifício altruísta e o coletivismo nacionalista, o Brasil com a malandragem ainda representa a primazia do individual e de seus afetos sobre as regras impessoais, hierarquias e identidades tribais; o pequeno empreendedorismo aparece aí como a principal modalidade econômica de nossa cultura. Tudo isso, sem dúvida, nos traz desafios; mas muito disso pode ser justamente o que o mundo precisa para não mergulhar no abismo.

Todo brasileiro se orgulha do patrimônio físico e ambiental de nosso país. O patrimônio humano e cultural não é menos rico. E se soubermos valorizá-lo e promover o meio institucional propício para que ele floresça, podemos melhorar ainda mais e ocupar uma posição aos olhos do mundo que faça jus à nossa grandeza. Mas para isso, o primeiro passo é parar de se envergonhar dela. Não só o general Mourão, como grande parte da cultura letrada no Brasil, faria bem em rever suas ideias pré-concebidas.

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