O dilema do porteiro
Num momento em que o governo monta uma guerra retórica contra a imprensa profissional, um caso como esse cai como uma luva para a narrativa presidencial
Publicado em 31 de outubro de 2019 às, 13h32.
Última atualização em 31 de outubro de 2019 às, 14h18.
Ainda existem algumas pontas soltas na história do porteiro do condomínio de Bolsonaro que o teria ligado ao assassinato de Marielle Franco: como é que o apartamento de Bolsonaro consta no livro de registros, supostamente escrito no próprio dia do ocorrido? Se o MP considerava o depoimento do porteiro falso, por que o encaminhou à PGR e ao STF? Por que a perícia dos áudios do interfone pelo MP só foi concluída na quarta-feira, isto é, depois de estourado o escândalo midiático?
Dito isso, desde que a promotora Simone Sibilio asseverou que o depoimento do porteiro era falso e em contradição com as evidências técnicas disponíveis, o mais provável é que a história toda seja mesmo um equívoco, um pista enganosa (cujos motivos ainda devem ser objeto de investigação) que levantou muita poeira e não revelou nada. E a Rede Globo, embora não tenha veiculado nenhuma informação falsa (afinal, o porteiro realmente deu o depoimento reproduzido pela emissora), acabou contando uma história incompleta e que, para os ouvidos do grande público, soará como uma mentira politicamente motivada.
Num momento em que o governo monta uma verdadeira guerra retórica contra a imprensa profissional, procurando fidelizar a população apenas à palavra de suas lideranças políticas e respectivos bajuladores, um caso como esse cai como uma luva para a narrativa presidencial.
É importante ressaltar que o Jornal Nacional não mentiu. E mais do que isso: em sua apuração, ele inclusive refutou parcialmente o depoimento do porteiro. Foi a própria Globo que mostrou que Bolsonaro estava em Brasília no dia do assassinato, e que portanto, ao contrário do que o porteiro dissera, não poderia ter dado a autorização para a entrada do miliciano Élcio Queiroz no condomínio. A emissora deu também amplo espaço para o advogado de Bolsonaro se pronunciar, negando completamente o conteúdo.
Contudo, se os jornalistas tivessem ouvido, além da polícia, os promotores ligados ao caso, teriam já desde o início ouvido a versão deles, de que o depoimento era inteiramente falso. Ainda que a palavra dos promotores não seja a verdade absoluta, seria bom ter contado com essa versão na matéria, mesmo que fosse para mostrar possíveis pontas soltas dele.
Isso exigiria, contudo, mais tempo e recursos. Com as redações espremidas, carência de pessoas e dinheiro, com a pressão constante por se publicar furos e atrair a atenção imediata do espectador, a capacidade de se fazer jornalismo investigativo real – não ficar apenas dependendo das palavras de policiais e promotores – cai muito. O resultado são matérias bombásticas num primeiro momento mas que entregam menos certezas do que parece à primeira vista. Não duvido que o clima de pura animosidade que impera entre presidente e imprensa também tenha predisposto os jornalistas a veicular a matéria o quanto antes.
Seja como for, o fato é que Bolsonaro ficou visivelmente abalado com a reportagem, chegando a fazer ilações fora de propósito. Por exemplo, que o objetivo da reportagem era prender um de seus filhos – nenhum dos quais foi sequer mencionado – ou ainda de que tudo partiu do governador fluminense Wilson Witzel. Seus xingamentos e ameaças à Globo, ademais, são de uma baixeza lamentável para um Presidente da República. A julgar pela reação, ainda que o depoimento do porteiro seja falso, parece que a relação de Bolsonaro com milicianos lhe é um tema muito sensível.
O Brasil merece saber a verdade. Quem foi o mandante e quais os cúmplices do assassinato de Marielle Franco? Qual a exata natureza da relação de Jair Bolsonaro (e parentes) com milicianos? Por que o porteiro deu um depoimento falso, e quem esperava se beneficiar com isso? Witzel? O próprio Bolsonaro? Em tudo isso, o jornalismo tem um papel essencial. Aliás, a própria apuração por parte do MP sobre a veracidade da fala do porteiro parece ter sido provocada pela reportagem. O dilema entre resultado econômico e jornalismo de qualidade está mais crítico do que nunca. Onde faltam recursos e pessoas, só a dedicação e disciplina redobrada dos jornalistas profissionais pode fazer a diferença.