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O cabo de guerra da “cultura do estupro”

Por duas semanas, o único descanso do noticiário político foi o bárbaro estupro coletivo de uma adolescente no Rio de Janeiro. Fora ter sido uma brutalidade chocante, como tantas outras que ocorrem cotidianamente no mundo, esse caso serviu como campo de batalha cultural, e por isso gerou tanta repercussão. Casos similares – ou até mais […]

PROTESTO: fora ter sido uma brutalidade chocante, o estupro no Rio serviu como campo de batalha cultural / Reuters
DR

Da Redação

Publicado em 8 de junho de 2016 às 10h20.

Última atualização em 22 de junho de 2017 às 18h38.

Por duas semanas, o único descanso do noticiário político foi o bárbaro estupro coletivo de uma adolescente no Rio de Janeiro. Fora ter sido uma brutalidade chocante, como tantas outras que ocorrem cotidianamente no mundo, esse caso serviu como campo de batalha cultural, e por isso gerou tanta repercussão. Casos similares – ou até mais violentos – ocorreram nesse meio tempo sem receber uma fração da atenção deste.

O caso da menina carioca se transformou de um crime universalmente condenado em um embate ideológico entre esquerda e direita, ou entre feminismo e antifeminismo. Para o lado feminista, o estupro coletivo não pode ter sido um caso isolado de bestialidade, ou mesmo resultado de uma subcultura violenta do tráfico de drogas e dos bailes funk. É fundamental afirmar que foi apenas uma instância particularmente acentuada – mas não qualitativamente diferente – de uma cultura do estupro que perpassa toda a sociedade.

O que os trinta jovens homens (teriam sido trinta mesmo?) fizeram é um ponto extremo de um contínuo de pequenas violações do corpo e da integridade feminina que começam com piadas machistas, cantadas, pornografia e até a gramática da língua portuguesa. É toda uma cultura que conspira contra a mulher e que a viola rotineiramente. Todos os homens são culpados; são estupradores potenciais. E, portanto, todos devem se submeter aos rituais de contrição, confissão e penitência, seguidos de mudança na forma de se comportar e de falar.

O outro lado do espectro, para a direita antifeminista, ficou com a tarefa inglória de mostrar que o caso não foi como retratado inicialmente. Que talvez nem tivesse sido estupro. Houve, sem dúvida, crime: filmar a jovem nua e tocar em suas partes íntimas enquanto estava desmaiada já configura, pela lei, crime de estupro. Mas é algo bem menos chocante do que a história inicial de uma menina violentada por trinta homens. Se o crime não foi tão brutal assim, ou se foi causado por algo mais localizado – a cultura do baile funk, o comportamento promíscuo da menina – então talvez a cultura como um todo não precise ser reformada segundo o plano feminista radical.

Cada lado torcia para sua versão estar certa. A única coisa que não importava era como a vítima se sentia e como lidara com aquilo. A guerra ideológica não deixa espaço para a empatia genuína, para uma conexão com a complexidade do caso concreto. Não que a empatia seja um sentimento obrigatório; a vida seria insuportável se realmente sentíssemos dor por cada ato de violência que ocorre no Brasil. Mas é curioso que, em meio a tantas expressões de preocupação, o único real assunto de discussão tenha sido a tal “cultura do estupro”: um lado tentando passar a culpa para todos os homens e o outro querendo passá-la para a vítima.

Afinal, temos uma cultura do estupro? Termos vagos permitem quase qualquer resposta. Há uma tendência a suspeitar de vítimas de violência sexual, a ver nelas um desejo secreto que busca se ocultar? Sim. Ao mesmo tempo, é um fato que o homem que pratica o crime sexual – por exemplo, um bolinador de transporte público – corre risco de vida no momento em que é descoberto pelos populares? Também. Temos aspectos culturais que parecem facilitar o estupro e outros que parecem coibi-lo. Chamar isso de “cultura do estupro” vai ao gosto ideológico do freguês, e a suas intenções políticas para a sociedade. É notável a desigualdade no tratamento, pelos mesmos movimentos feministas, de um estupro grupal cometido por membros do MST na semana que passou.

Dias depois de já baixada a polêmica, um novo vídeo surgiu. Nele, ficava claro que a menina implorara para não ser violada. Talvez não tenham sido trinta; mas não há mais dúvida razoável de que foi estupro em sentido pleno – não apenas na ampla definição legal. Quem acusou ou desmereceu as palavras da jovem agora sente o sabor amargo de ter cometido uma injustiça motivado pela paixão ideológica. Os defensores da cultura do estupro venceram essa batalha.

Mas e se o novo vídeo revelasse que, ao contrário, a jovem tivesse consentido de bom grado à orgia? Daí as vozes mais exaltadas do feminismo é que estariam erradas, como em casos de falsos estupros que já foram noticiados com grande alarde no passado. Antes do vídeo aparecer, não havia como prever qual lado estava certo. Sendo assim, mudou alguma coisa?

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Por duas semanas, o único descanso do noticiário político foi o bárbaro estupro coletivo de uma adolescente no Rio de Janeiro. Fora ter sido uma brutalidade chocante, como tantas outras que ocorrem cotidianamente no mundo, esse caso serviu como campo de batalha cultural, e por isso gerou tanta repercussão. Casos similares – ou até mais violentos – ocorreram nesse meio tempo sem receber uma fração da atenção deste.

O caso da menina carioca se transformou de um crime universalmente condenado em um embate ideológico entre esquerda e direita, ou entre feminismo e antifeminismo. Para o lado feminista, o estupro coletivo não pode ter sido um caso isolado de bestialidade, ou mesmo resultado de uma subcultura violenta do tráfico de drogas e dos bailes funk. É fundamental afirmar que foi apenas uma instância particularmente acentuada – mas não qualitativamente diferente – de uma cultura do estupro que perpassa toda a sociedade.

O que os trinta jovens homens (teriam sido trinta mesmo?) fizeram é um ponto extremo de um contínuo de pequenas violações do corpo e da integridade feminina que começam com piadas machistas, cantadas, pornografia e até a gramática da língua portuguesa. É toda uma cultura que conspira contra a mulher e que a viola rotineiramente. Todos os homens são culpados; são estupradores potenciais. E, portanto, todos devem se submeter aos rituais de contrição, confissão e penitência, seguidos de mudança na forma de se comportar e de falar.

O outro lado do espectro, para a direita antifeminista, ficou com a tarefa inglória de mostrar que o caso não foi como retratado inicialmente. Que talvez nem tivesse sido estupro. Houve, sem dúvida, crime: filmar a jovem nua e tocar em suas partes íntimas enquanto estava desmaiada já configura, pela lei, crime de estupro. Mas é algo bem menos chocante do que a história inicial de uma menina violentada por trinta homens. Se o crime não foi tão brutal assim, ou se foi causado por algo mais localizado – a cultura do baile funk, o comportamento promíscuo da menina – então talvez a cultura como um todo não precise ser reformada segundo o plano feminista radical.

Cada lado torcia para sua versão estar certa. A única coisa que não importava era como a vítima se sentia e como lidara com aquilo. A guerra ideológica não deixa espaço para a empatia genuína, para uma conexão com a complexidade do caso concreto. Não que a empatia seja um sentimento obrigatório; a vida seria insuportável se realmente sentíssemos dor por cada ato de violência que ocorre no Brasil. Mas é curioso que, em meio a tantas expressões de preocupação, o único real assunto de discussão tenha sido a tal “cultura do estupro”: um lado tentando passar a culpa para todos os homens e o outro querendo passá-la para a vítima.

Afinal, temos uma cultura do estupro? Termos vagos permitem quase qualquer resposta. Há uma tendência a suspeitar de vítimas de violência sexual, a ver nelas um desejo secreto que busca se ocultar? Sim. Ao mesmo tempo, é um fato que o homem que pratica o crime sexual – por exemplo, um bolinador de transporte público – corre risco de vida no momento em que é descoberto pelos populares? Também. Temos aspectos culturais que parecem facilitar o estupro e outros que parecem coibi-lo. Chamar isso de “cultura do estupro” vai ao gosto ideológico do freguês, e a suas intenções políticas para a sociedade. É notável a desigualdade no tratamento, pelos mesmos movimentos feministas, de um estupro grupal cometido por membros do MST na semana que passou.

Dias depois de já baixada a polêmica, um novo vídeo surgiu. Nele, ficava claro que a menina implorara para não ser violada. Talvez não tenham sido trinta; mas não há mais dúvida razoável de que foi estupro em sentido pleno – não apenas na ampla definição legal. Quem acusou ou desmereceu as palavras da jovem agora sente o sabor amargo de ter cometido uma injustiça motivado pela paixão ideológica. Os defensores da cultura do estupro venceram essa batalha.

Mas e se o novo vídeo revelasse que, ao contrário, a jovem tivesse consentido de bom grado à orgia? Daí as vozes mais exaltadas do feminismo é que estariam erradas, como em casos de falsos estupros que já foram noticiados com grande alarde no passado. Antes do vídeo aparecer, não havia como prever qual lado estava certo. Sendo assim, mudou alguma coisa?

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