O aborto e a sociedade
Pauta complexa é debatida e decidida por legisladores homens
Publicado em 1 de dezembro de 2017 às, 17h46.
A ministra do STF Rosa Weber negou o pedido da liminar que permitira o aborto a uma mulher grávida que não tem condições econômicas de criar mais um filho. A reação tem sido forte em muitos setores progressistas, especialmente os ligados ao PSOL, que foi quem entrou com ação (com óbvia intenção política, não com crença real de que isso seria a porta para legalizar o aborto no Brasil).
A liminar irá ao plenário mas a decisão não deve mudar. E, a bem da verdade, não deveria mudar. Eu sou pessoalmente favorável a que a lei permita o aborto a até três meses de gestação. Mas isso seria uma mudança na lei; não é algo que os juízes decidam interpretar na lei existente.
Seja como for, em momentos como esse o assunto “aborto” volta ao debate. Ambos os lados apresentam argumentos muito fortes e difíceis de serem levados à prática em todas as suas consequências.
Se o argumento de que o feto (ou, ainda mais, o embrião) é uma vida humana dotada de direitos for aplicado de forma consistente, o aborto em caso de estupro também deveria ser proibido. Afinal, não se pode tirar o direito mais fundamental de uma pessoa, a vida, por que o genitor dela cometeu um crime. O embrião é inocente do crime do pai. E por mais que a mãe sofra em carregar aquele filho por nove meses, em nenhum caso os sentimentos ruins de uma pessoa justificam que ela assassine outra pessoa; ainda mais o próprio filho.
Por outro lado, pela lógica do “meu corpo, minhas regras” usada para defender o aborto, a permissão deveria ser dada para abortos inclusive no nono mês e até mesmo para o infanticídio. Afinal, entre um bebê de nove meses dentro da barriga e um fora da barriga, a única coisa que muda é o local. Se um pode ser morto sem maiores consequências legais, qual o sentido de ver um crime hediondo em se fazer a mesma coisa com o outro? O bebê nascido, ademais, também depende do corpo da mãe: para mamar, para ser cuidado, etc. Se ela (e as demais pessoas que poderiam cuidar do bebê) é dona do próprio corpo dessa forma absoluta, então ela deve ter inclusive o direito de deixar o filho nascido morrer de fome ou frio; ela não tem obrigação nenhum de usar o corpo dela para ajudá-lo.
No centro de tudo isso, está uma discussão que não é jurídica, mas filosófica: o que é e quando começa a vida humana? Sem me delongar muito nessa discussão, creio que o único resultado dela é o de provar que nossos conceitos do dia-a-dia, que nos permitem separar homens de outros seres, têm algo de fictício. Não há um momento especial em que um novo espírito chega ao mundo, em que podemos observar e dizer: agora sim, há um ser humano dotado de direitos. Qualquer célula nossa é, potencialmente, um novo homem inteiro, basta ser manipulada corretamente. Nossas noções morais se baseiam numa metafísica falsa.
Considerando isso, melhor buscar uma solução de equilíbrio que dê autonomia para as mulheres mas sem também permitir a morte de bebês que já sentem e evitando ferir muito os sentimentos de grande parte da população que abomina a prática. Cada um segue sua consciência, todo mundo sai um pouco infeliz, mas a coisa funciona sem ter que permitir ou proibir coisas que choquem demais a opinião pública. A linha dos três meses – que é mais ou menos a da formação de um sistema nervoso central – funciona bem para isso. Faz sentido para o senso comum, embora, se fôssemos analisá-la filosoficamente, também se revelaria arbitrária.
No mundo de ficções que são nossas noções éticas e políticas, é o melhor que podemos ter. Mas que seja feito do jeito correto; e não por meio de juízes legisladores.