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Meritocracia: um valor?

Com a derrocada da esquerda brasileira nas eleições municipais, estão em alta os valores associados à direita: liberdade de mercado, Estado reduzido e, o mais polêmico deles, a meritocracia. Por algum motivo, em muitos círculos, “meritocracia” é palavrão, ainda que poucos se deem ao trabalho de defini-lo e pensar nos diferentes significados que ela pode […]

Enem: Não foram registrados problemas na realização do exame até a divulgação do balanço, por volta de 14h30 (USP Imagens/Divulgação)
Enem: Não foram registrados problemas na realização do exame até a divulgação do balanço, por volta de 14h30 (USP Imagens/Divulgação)
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Joel Pinheiro da Fonseca

Publicado em 19 de novembro de 2016 às, 06h18.

Última atualização em 22 de junho de 2017 às, 18h24.

Com a derrocada da esquerda brasileira nas eleições municipais, estão em alta os valores associados à direita: liberdade de mercado, Estado reduzido e, o mais polêmico deles, a meritocracia.

Por algum motivo, em muitos círculos, “meritocracia” é palavrão, ainda que poucos se deem ao trabalho de defini-lo e pensar nos diferentes significados que ela pode ter em diferentes contextos. consideramos que a meritocracia se aplica de duas maneiras diferentes.

De maneira geral, meritocracia é alocar as posições que cada indivíduo ocupa em alguma hierarquia segundo o mérito dela; mérito que pode ser a soma de esforços, talentos e habilidades ou, o que é mais fácil de medir, o resultado que aquela pessoa entrega. Isso se opõe a premiar o mero tempo de trabalho, as relações pessoais, a origem familiar ou o pertencimento a algum grupo corporativista. Na meritocracia, os melhores vencem, embora saber quem são os melhores não seja sempre algo óbvio.

Penso, ademais, que a meritocracia existe de duas maneiras muito diferentes: dentro de organizações e na sociedade como um todo.

Dentro de organizações (que podem ser uma empresa, uma igreja, o Estado, etc.), meritocracia é dar a cada um de acordo com seu mérito, ou seja, seu desempenho. Quem deve ocupar os cargos de liderança e de maior responsabilidade? Aqueles que se destacarem por seu desempenho, sua dedicação, etc. Nesse caso, ignoram-se diferenças entre as pessoas, focando-se apenas no resultado que elas são capazes de entregar. O contrário disso é, por exemplo, promover com base em tempo de serviço, ou dar exatamente o mesmo a todos independentemente do desempenho, ou ainda privilegiar aqueles que vão pior, porque precisam de mais ajuda.

Está longe de ser uma fórmula simples de se aplicar. Para que a medição do desempenho seja objetiva, ela tem que ser transformada em um valor numérico, um índice diretamente comparável entre diferentes pessoas. E a partir do momento que um índice é utilizado para indicar o cumprimento de uma meta, a tendência é que a meta passe a ser o índice, que pode ser maximizado de maneiras que nem de longe importam para a meta real. Por exemplo: escolas que, para figurar bem no ranking do ENEM, criam escolas “irmãs” nas quais matriculam apenas seus melhores alunos. Essas escolas terão as melhores notas no ENEM, mas apenas porque capturaram os melhores alunos, e não por ter um ensino realmente mais eficaz.

Ainda assim, para muitas organizações, um sistema meritocrático minimamente funcional permite resultados melhores do que as alternativas tradicionais: promoção por mera opinião subjetiva do chefe (mais manipulável do que o dado bruto do desempenho), por tempo de serviço, etc. A meritocracia cria o incentivo para que cada um dê o seu melhor, ao invés de premiar a complacência.

Já na sociedade como um todo, isto é, na vida fora das organizações, falar em meritocracia já é mais complexo. Primeiro porque não existe nenhuma meta previamente definida. Segundo, porque não existe uma instância superior que avalia e premia as pessoas com base nessa meta. Tentar aplicar a ideia padrão de meritocracia à sociedade, ademais, seria impossível: com origens tão diferentes, como medir o “mérito” das pessoas com base em algum resultado, como a renda em dinheiro? É um fato evidente que, na prática, quem mais se esforça não necessariamente ganha mais; um faxineiro, por mais que se dedique, jamais ganhará o mesmo que um ator famoso. Teremos que esperar pela perfeita igualdade de condições iniciais (algo, ademais, impossível, posto que exigiria não apenas rendas iguais, como genética e meio familiar também idênticos) para enfim poder falar de meritocracia?

Parece-me que devemos pensar a meritocracia em um outro sentido quando aplicada à sociedade. Um sentido que, segundo a socióloga Lívia Barbosa no estudo “Igualdade e Meritocracia” (de 2003), é o sentido original do termo: a possibilidade de se sustentar pelo próprio esforço, de construir a própria independência dentro da sociedade, e não um índice de comparação com outras pessoas. Uma sociedade meritocrática, nessa visão, é uma sociedade em que a pessoa que coloca seus talentos e seu esforço para trabalhar é, via de regra, recompensada, e pode ficar com o fruto de seu trabalho.

Por essa lógica, um país com muitos impostos e entraves à livre iniciativa, e que falha em garantir condições básicas para todos, como o Brasil, é pouco meritocrático. Faz com que muita gente seja dependente (da família, do Estado) e sabota os esforços daqueles que buscam se sustentar.

Quando queremos um país mais meritocrático, portanto, não estamos sonhando com um mundo no qual a renda de cada um seja resultado direto da quantidade de esforço aplicada – mundo que talvez seja impossível, e sim uma nação na qual o esforço receba sua recompensa; em que a ascensão social e econômica é possível, embora não garantida. Em que, ao invés de se comparar uns com os outros para saber a posição que cada um ocupa, as pessoas tenham à disposição os meios para melhorar sua própria vida.

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