Justiça social autofágica
O racismo e o machismo devem ser combatidos - mas, pessoas e atos que não sejam machistas ou racistas não devem ser condenados como se fossem
Janaína Ribeiro
Publicado em 17 de setembro de 2020 às 17h29.
O racismo e o machismo devem ser combatidos. Até aqui todo mundo está de acordo. Agora vou soltar a afirmação polêmica: pessoas e atos que não sejam machistas ou racistas não devem ser condenados como se fossem. Embora em abstrato todo mundo pense concordar, não é o que vemos na prática.
A história se repete quase semanalmente: alguém faz uma crítica a outra pessoa em algum rede social. O autor da crítica não é um racista ou machista. A outra pessoa é mulher ou negra. A crítica, embora não dissesse respeito a gênero ou raça e nem fosse motivada por qualquer preconceito, é interpretada como preconceituosa, e uma avalanche de hostilização recai sobre seu autor. Amedrontado, ele pede desculpas, prometendo um esforço sincero de repensar suas atitudes. Em retribuição a esse gesto de humildade, recebe ainda mais insultos.
Qual o resultado dessa modalidade específica de combate à opressão? Pessoas se auto-neutralizam no debate público sem nenhuma necessidade. E outras que são tratadas com condescendência apenas pelo medo das consequências sociais de se criticá-las. E enquanto essas pessoas, todas elas engajadas e de acordo com a importância de se combater o preconceito e a opressão, se engalfinham numa luta autofágica, como está o mundo fora do meio progressista?
Essa dinâmica, afinal, se dá entre pessoas de esquerda. Na direita, sobra apenas incredulidade com tal perda de tempo e revolta mal-direcionada. Pior ainda: todo esse furor usado para detectar e punir supostos machistas e racistas entre os próprios aliados é impotente para sequer tocar aqueles que realmente cometem esses atos. É o jornalista de esquerda que sofre o peso do cancelamento por um comentário bem-intencionado mas interpretado de forma maliciosa, jamais o pastor ou político de direita que realmente ri de grupos oprimidos. Ainda ganham mais munição só de observar os novos picos de perseguição injusta que as brigadas progressistas cometem.
Atacar aliados enquanto se fortalece inimigos é auto-sabotagem. Se a preocupação com essas bandeiras for real, se ela for algo além de uma mera vaidade a ser alimentada nas redes sociais, a estratégia tem que mudar. Essa mudança não será apenas estratégica, como será também um progresso ético e filosófico.
Se racismo e machismo são estruturais, como seus maiores combatentes vivem a insistir, então não há o menor sentido em se individualizar a repressão a eles, procurando supostas micro-violações e instâncias veladas por todo lado. Esses deixarão de existir apenas quando e se a estrutura subjacente for transformada. E aí estamos supondo que de fato havia algum elemento potencialmente preconceituoso. Em muitos casos, não há rigorosamente nada, apenas o desejo de uma militância de encontrar vítimas e culpados. Nesses casos, não há o que transformar: mesmo numa sociedade igualitária, um homem poderá criticar uma mulher, e um branco poderá criticar um negro.
Por fim, para as pessoas que, por discutir online, mais cedo ou mais tarde terão a mira da militância digital sobre si, proponho o seguinte exame sincero: sua fala foi motivada por algum ímpeto racistas ou machista? Não? Então jamais peça desculpa por ela. Prossiga de cabeça erguida.
A turba digital assusta mas não machuca. Logo passa para o próximo alvo. E mesmo se você se curvasse, aí é que não seria poupado mesmo. Ao preservar a própria dignidade, será inclusive mais respeitado por ela no futuro. Ao agir assim, estará ajudando com o legítimo combate às injustiças, e não apenas às paixões momentâneas da rede social.
O racismo e o machismo devem ser combatidos. Até aqui todo mundo está de acordo. Agora vou soltar a afirmação polêmica: pessoas e atos que não sejam machistas ou racistas não devem ser condenados como se fossem. Embora em abstrato todo mundo pense concordar, não é o que vemos na prática.
A história se repete quase semanalmente: alguém faz uma crítica a outra pessoa em algum rede social. O autor da crítica não é um racista ou machista. A outra pessoa é mulher ou negra. A crítica, embora não dissesse respeito a gênero ou raça e nem fosse motivada por qualquer preconceito, é interpretada como preconceituosa, e uma avalanche de hostilização recai sobre seu autor. Amedrontado, ele pede desculpas, prometendo um esforço sincero de repensar suas atitudes. Em retribuição a esse gesto de humildade, recebe ainda mais insultos.
Qual o resultado dessa modalidade específica de combate à opressão? Pessoas se auto-neutralizam no debate público sem nenhuma necessidade. E outras que são tratadas com condescendência apenas pelo medo das consequências sociais de se criticá-las. E enquanto essas pessoas, todas elas engajadas e de acordo com a importância de se combater o preconceito e a opressão, se engalfinham numa luta autofágica, como está o mundo fora do meio progressista?
Essa dinâmica, afinal, se dá entre pessoas de esquerda. Na direita, sobra apenas incredulidade com tal perda de tempo e revolta mal-direcionada. Pior ainda: todo esse furor usado para detectar e punir supostos machistas e racistas entre os próprios aliados é impotente para sequer tocar aqueles que realmente cometem esses atos. É o jornalista de esquerda que sofre o peso do cancelamento por um comentário bem-intencionado mas interpretado de forma maliciosa, jamais o pastor ou político de direita que realmente ri de grupos oprimidos. Ainda ganham mais munição só de observar os novos picos de perseguição injusta que as brigadas progressistas cometem.
Atacar aliados enquanto se fortalece inimigos é auto-sabotagem. Se a preocupação com essas bandeiras for real, se ela for algo além de uma mera vaidade a ser alimentada nas redes sociais, a estratégia tem que mudar. Essa mudança não será apenas estratégica, como será também um progresso ético e filosófico.
Se racismo e machismo são estruturais, como seus maiores combatentes vivem a insistir, então não há o menor sentido em se individualizar a repressão a eles, procurando supostas micro-violações e instâncias veladas por todo lado. Esses deixarão de existir apenas quando e se a estrutura subjacente for transformada. E aí estamos supondo que de fato havia algum elemento potencialmente preconceituoso. Em muitos casos, não há rigorosamente nada, apenas o desejo de uma militância de encontrar vítimas e culpados. Nesses casos, não há o que transformar: mesmo numa sociedade igualitária, um homem poderá criticar uma mulher, e um branco poderá criticar um negro.
Por fim, para as pessoas que, por discutir online, mais cedo ou mais tarde terão a mira da militância digital sobre si, proponho o seguinte exame sincero: sua fala foi motivada por algum ímpeto racistas ou machista? Não? Então jamais peça desculpa por ela. Prossiga de cabeça erguida.
A turba digital assusta mas não machuca. Logo passa para o próximo alvo. E mesmo se você se curvasse, aí é que não seria poupado mesmo. Ao preservar a própria dignidade, será inclusive mais respeitado por ela no futuro. Ao agir assim, estará ajudando com o legítimo combate às injustiças, e não apenas às paixões momentâneas da rede social.