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Ideologia contra educação no governo Doria

"Ideologia de gênero" é uma expressão criada por ideólogos de direita para difamar qualquer discussão da relação entre gênero, sexo e sexualidade

JOÃO DORIA: “Não concordamos e nem aceitamos apologia à ideologia de gênero” / Antonio Milena/ VEJA.com
JOÃO DORIA: “Não concordamos e nem aceitamos apologia à ideologia de gênero” / Antonio Milena/ VEJA.com
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Joel Pinheiro da Fonseca

Publicado em 6 de setembro de 2019 às, 07h26.

Última atualização em 6 de setembro de 2019 às, 14h51.

O nível do debate político no Brasil já não é bom. Mas quando o tema envolve sexualidade e educação ele realmente cai para o mais baixo possível: pânico moral, preconceito e intolerância tomam conta. A classe política tem surfado essa onda. Esse oportunismo, contudo, pode nos custar caro enquanto sociedade, dado que a própria existência de educação sexual no currículo de crianças e jovens brasileiros está na mira de militantes de direita.

Nesta semana, quem protagonizou a discussão foi o governador de São Paulo, João Doria. Disse ele em sua conta oficial de Twitter: “Fomos alertados de um erro inaceitável no material escolar dos alunos do 8º ano da rede estadual. Solicitei ao Secretário de Educação o imediato recolhimento do material e apuração dos responsáveis. Não concordamos e nem aceitamos apologia à ideologia de gênero.”

O primeiro ponto a se frisar é que “ideologia de gênero” não é um nome utilizado por nenhuma linha de pesquisa, escola de pensamento ou teoria. Tampouco consta da apostila denunciada pelo governador, “São Paulo faz escola – Caderno do aluno”. É um termo de propaganda, uma expressão criada por ideólogos de direita para difamar qualquer discussão da relação entre gênero, sexo e sexualidade. Ao utilizar esse termo, Doria endossa a motivação político-ideológica por trás dessa expressão, que nada tem de científica, acadêmica ou conceitual.

Pelo tom do tweet do governador, parece que uma frase em um material didático disparou uma verdadeira operação policial de emergência para render e capturar as apostilas criminosas (e, de fato, inspetores entraram nas escolas e confiscaram as apostilas dos alunos durante a aula). O que será que havia de tão perigoso assim que demandou uma ação tão abrupta por parte do governador?

Nas três páginas da apostila dedicadas a discutir sexualidade e gênero, passagens como esta: “A identidade de gênero refere-se a algo que não é dado e, sim, construído por cada indivíduo a partir dos elementos fornecidos por sua cultura: o fato de alguém se sentir masculino e/ou feminino. Isso quer dizer que não há um elo imediato e inescapável entre os cromossomos, o órgão genital, o aparelho reprodutor, os hormônios, enfim o corpo biológico em sua totalidade, e o sentimento que a pessoa possui de ser homem ou mulher”. Está bem longe de ser uma formulação radical. Apenas diz o óbvio: há um processo de construção cultural das identidades de gênero. Não há uma passagem direta e necessário do sexo biológico para o gênero que a pessoa reconhece em si. A prova disso é que existem pessoas cuja autodefinição diverge de seu sexo biológico.

É bom lembrar que esse material não estava sendo passado a criancinhas indefesas do jardim de infância (que nem conseguiriam entender o que está escrito), mas para alunos do oitavo ano, ou seja, adolescentes de 13 e 14 anos. Pessoas que já sabem tudo sobre sexo, que sabem que existem homossexuais e transgêneros, e muitos dos quais inclusive já são sexualmente ativos e têm suas preferências. Idade na qual é muito importante dar algum tipo de educação sexual, que cumpre vários objetivos: prevenir gravidez indesejada, DSTs, identificar e combater abusos sexuais, ensinar tolerância e reduzir preconceitos. Entender que as categorias rígidas que temos sobre os papeis de gênero não são uma criação eterna e imutável de Deus ou da natureza, mas têm muito de construção cultural e poderiam ser diferentes.

Graças a atitude do governo, esse conteúdo não chegará aos jovens, e futuras publicações provavelmente ficarão receosas de tocar nele. Tudo por causa de um medo genérico que ninguém sabe explicar de onde vem. Qual é o problema específico no texto da apostila? É diferenciar entre sexo biológico e gênero social (todas as características que associamos a homens e mulheres)? Mas alguém nega que, embora relacionados, sejam coisas distintas?

A tragicomédia não para por aí. A ação do governo foi tão mal pensada e atrapalhada que mesmo outras disciplinas irão sofrer. Afinal, a apostila não era só de educação sexual; cobria vários temas, como ciências, matemática e inglês.

Pois é. Na cruzada moralista pela pureza dos jovens inocentes de 14 anos, a educação é um vítima colateral.